Sunday, November 21, 2021

Vilipêndio na academia

Gosto cada vez mais das palavras. Machado, Saramago, Quintana sempre me saborearam presenteadamente. E Bakhtin e Freud me ajudaram na permanente busca de um ponto de vista (ponto de escuta, melhor dizendo) onde as vozes, suas dissonâncias, ruídos comunicacionais diversos e as camuflagens das intenções sejam adequadamente filtradas, relativizadas e iluminadas para uma interpretação bacana. 

"Bacana", por exemplo, é muito legal! Cada um faz o que quer com bacana. Mas na vida cotidiana, bacana me parece ser ainda uma palavra sonora e démodé, que guarda coerência afetiva e positiva. Bacana, "palavra-ônibus" segundo meu dicionário aqui (tem mais da definição ali embaixo).

Mas as palavras são minhas também. E eu as adoro. E uso. Acho mesmo que as uso até demais....

Usei cerca de 36600 palavras para contar uma história. Acadêmica. Era uma dissertação de mestrado em sociologia. Mas, essencialmente, uma história: descritiva em conceitos, autores e suas inter-relações, em minhas perguntas ao mundo, dirigidas a algumas pessoas, e por fim, a forma e o processo pelo qual procurei as resposta para algumas perguntas que me interessavam. E ainda tinha algumas destas respostas, junto com precárias conclusões a respeito.

Fui arguido por uma banca, pois assim reza a tradição corrente de validação acadêmica deste tipo de trabalho. Aqui preciso reforçar ainda mais o meu gosto por usar as palavras. As palavras escritas com certeza, mas muito mais ainda as palavras faladas. E eu teria adorado contar aquela história mais e mais vezes. Porém ali não era bem o caso de contar a história, e sim apresentar aos que, naquele momento, detinham o poder de julgar se posso almejar uma condição específica. No caso, a condição de possuir um título de mestre em sociologia, cuja função simbólica primordial se representa exatamente na condição de pertencimento àquele campo com "pares", com todas as aspas que justificam esta nova e almejada condição, de "estar entre pares" com os membros da comunidade acadêmica das ciências sociais.

A história que contei naquele dia eu acho que tem muita coisa legal. O trabalho tem problemas acadêmicos, claro; e não poucos. Mas é uma história apresentada de forma bem costurada, elaborada dentro das normas exigidas, que não contém nem incoerências graves e nem erros crassos de julgamentos. (E se você quiser ler, vou ficar feliz de verdade em te enviar o arquivo em pdf, é só falar).

Agora chegamos no cerne do que eu quero compartilhar. Penso que, metaforicamente, existe uma "engenharia acadêmica" mas também existe uma engenharia prática. Existem indicações sobre exatamente qual o parafuso seria tecnicamente correto para determinada função prática. Porém existe a necessidade de se colocar, por exemplo, uma bicicleta para funcionar em segurança com o material e conhecimento que eu tenho à disposição, mesmo que reconheçamos que a solução desvia da melhor solução técnica acadêmica. 

Seguirei numa metáfora equivalente para contar aqui minha visão daquela hora e meia de minha vida em transformação (de "mestrando postulante" em mestre, pois!).

Sobre o trabalho que apresentava eu não fui arguido nenhuma vez com questões iniciadas por: "explique melhor...", ou "o que você entende por..." e nem mesmo "porque estas relações aparecem aqui....". Todas as sentenças que me foram encaminhadas podem ser agrupadas no balaio raso do "se fosse feito de outro jeito ficaria melhor". Ou "menos pior", no caso dos comentários de presidente da banca*. Por sinal uma conclusão que eu estou perfeitamente aberto para concordar, desde que passando pelas aquelas questões às quais me referi antes, e que não se fizeram ouvir.

Minha sensação é de que a sociologia acadêmica não esteve presente na defesa da minha dissertação. Gostaria tanto de apresentar e debater, por exemplo, a evolução do conceito de comunidade, na vida e na sociologia. Ou as mudanças práticas e conceituais que a história moldou, tanto na comunidade como na sociedade e na sociologia. Ou sobre como o que estudei pode trazer qualquer contribuição para a humanidade, sob qualquer aspecto. Mas isso praticamente não houve.

Por outro lado, eu tenho algum prazer em perceber que a "sociologia prática" reinou ali, em sua grandeza de realidade e na crueza de comportamentos propícios à reflexão analítica. E talvez mais: nas contemporaneidades da própria sociologia (pós moderna, reflexiva, antropocênica), onde Bourdieu, pairando em minha criativa imaginação, junto ao meu querido professor Clóvis, se riam e se enraiveciam junto comigo por estes comportamentos apequenadores da existência humana (existência social, que se registre logo...)

Por um lado eu estava razoavelmente preparado. Nenhuma vaidade para defender, nenhum propósito de contradizer qualquer coisa que fosse. Apenas vontade de acabar logo com aquilo e, se possível, aprender um pouco mais sobre sociologia e sobre o ritual em si. Acredito ter sido bem sucedido nestes propósitos: fui aprovado, apesar das duríssimas críticas ao meu texto, e aqui estou, refletindo novamente sobre as observações daquele dia, com uma lente sociológica um pouquinho mais elaborada do que antes.

Para tentar uma conclusão desta história, e justificar o título do post (obrigado Guilherme, amigo feito neste trajeto, e que esteve presente de surpresa na defesa, junto com o meu único convidado e um dos padrinhos desta conquista, meu muito querido amigo Henrique), vou rememorar um pequeno trecho da experiência, onde o vilipêndio se materializa magistralmente (de facto). A legitimidade do uso da violência simbólica ali em seu esplendor factual, rico em simbolismo e farto em abrangência analítica.

O arguidor principal, senhor já conhecido, gentil com meu trabalho e comigo, referenciou sua crítica principalmente em um texto de sua própria autoria, e que versava sobre como a vida rural sempre fora romantizada (essa era também uma das conclusões em meu texto). Mas animou-se um pouco além da conta (e do tempo), e na pressa de fechar sua fala já nos acréscimos, me manda lá um "na página 15, na nota de rodapé tem um comentário do autor X que claramente você não leu. Leu?" Fiquei atônito. Mais até pela mudança de tom do que pelo conteúdo propriamente dito da pergunta, pois eu havia lido mesmo cuidadosamente todas as minhas citações, conforme manda a regra elementar. 

Mas eu havia me boicotado. E dei azar. Não tinha levado meu texto impresso e, por razões técnicas da universidade, eu não podia mexer no meu computador, por conta de um mau contato severo no fio do projetor. Resolvi escapar pela tangente...

Isso tudo só para, mais tarde, revisando as críticas e as falas, perceber que ele se referia a um "apud" (texto de outro autor dentro da minha citação), e que por sua vez se tratava de um pequeno trecho em um prefácio ao livro de ainda outro autor. E que a conclusão citada era perfeitamente alinhada com a crítica principal do arguidor. Era verdadeiramente a resposta que ela pedia, sem exigir nem maiores preocupações de interpretação (veja você mesmo minha citação, ao final deste texto).

Daí que o vilipêndio enquanto sinónimo de repelir, expressa mesmo muito deste ritual de iniciação, onde o efeito final deve ser o de "admitir enquanto par" no campo acadêmico...


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1. verbete "Bacana" no Aurélio sec. XXI: "palavra-ônibus que exprime, encarecendo-as, inúmeras ideias apreciativas, e equivale a bom, excelente, belo, simpático, elegante, luxuoso, bem-educado, muito leal, inteligente, culto, etc, tudo no superlativo, aplicado a pessoas e/ou coisas; formidável, legal, bárbaro, infernal, tranchã, maneiro, massa, esperto.

2. A tal nota de rodapé, visando assegurar a compreensão do termo "comunidades de destino" conforme utilizado por Maffesoli:

Comunidades de destino: “Como já disse antes, existe um laço estreito entre o espaço e o quotidiano. E o espaço é, certamente, o repositório de uma socialidade que não se pode mais negligenciar. Isto é ressaltado em inúmeras pesquisas sobre a cidade. E é o que traduz a interrogação, ainda bem prudente, de H. Raymond no prefácio ao livro de Young e Willmott: “é preciso pensar que, em certos casos, morfologia urbana e modo de vida operário, chegam a formar um todo harmonioso?”. Certamente existe esta harmonia. Ela é o resultado do que propus chamar de “comunidade de destino”. […]. Naturalmente, e nunca insistiremos o suficiente sobre este ponto, que toda harmonia contém uma dose de conflito. A comunidade de destino é uma acomodação ao meio ambiente natural e social e, assim sendo, deve confrontar-se com a heterogeneidade sob suas diversas formas.” (Maffesoli, 1998, p. 174)

3. O texto que chamava a nota de rodapé:

O neotribalismo, caracterizado pela fluidez, pelos ajuntamentos pontuais e pela dispersão, se insere na construção dos movimentos urbanos e das comunidades de destino(*). Estes elementos parecem também estar presentes em outros movimentos, de forma similar ou transversal, e se manifestam em outras modalidades de relações sociais, menos fluidas ou pontuais. A vivência tribal, ao permitir o reconhecimento da individualidade, pode contrapor o atomismo e promover reconexões identitárias menos individualistas (Mocellim, 2011, p. 124). 

4. Vilipêndio, no Aurélio sec. XXI: "Ter ou considerar como vil; desprezar; repelir."

* Em tempo: Não, o presidente da banca não falou "menos pior" textualmente. Mas todas as quatro vezes que mencionou meu trabalho se equivocou no título do texto. E, em sua fala, foi duríssimo na crítica de pelo menos duas passagens, onde ficava nítido que não havia lido o texto com o cuidado elementar para fundamentar estas mesmas críticas. Ai.




Saturday, October 9, 2021

Hay que endurecer... - parte 2

Longevidade

Acho que fica fácil encaixar a longevidade numa daquelas ideias que nos une a todos, enquanto uma coisa que todos queremos, e que segue sendo um mistério muito individual. Coletivamente faz parte de um certo tipo específico de tabu, derivado do tabu básico que é a morte (ou melhor, o assunto morte). Minha mãe morreu com 95 anos, completaria 96 no dia de hoje. Longeva, sem dúvida, pelos padrões vigentes. E terna. De certa forma penso a longevidade como representada pela ternura, pela resiliência, no absorver as pancadas da vida sem deformar a parte mais rígida do ser. Lá segue marilita recebendo pancada atrás de pancada, criando os calos que todo organismo cria pela repetição, renovando e recriando sua ternura por um longo, penoso e generoso tempo....

Como generoso é julgamento, confesso que a generosidade aqui foi comigo, foi na minha conta. Pude ter muitos ciclos de vida revelados e relevados por aquele coração imenso, aquele olhar curioso e discreto que, sempre que podia, escutava minhas histórias, minhas raivas e meus muitos quase gols, sem nunca repreender, sem reprimir, quase sem julgar. A vivência que vou usar para ilustrar aqui eu a compartilho com alguns dos irmãos. Quando eu relatava algum conflito mais endurecido, uma raiva qualquer que ainda permanecia em minha couraça, ou descrevia algum conflito aberto de meu dia, ela muitas vezes perguntava docemente se a outra pessoa de minha contenda estava bem. Quase sempre antes de perguntar se eu estava bem. 

Este lado de sua ternura nem sempre se alinhava de imediato nas minhas expectativas. Eu contava, por exemplo, que o ciclista havia passado com a roda da bicicleta em cima do meu pé, e quando meu lamento havia escorrido, ela me pergunta se o ciclista ficou bem??? Porém, permite gentilmente que o assunto gire sobre si mesmo, em revisão factual, em revista narrativa e, sobretudo, em rearrumação afetiva. Afinal, era minha mãe comentando. Daí que a generosidade também era com o ambiente todo à sua volta.

Jémguémdêm   

Oswaldo irradiava ao ambiente em volta. Era muito difícil não notar que ele estava por ali. Isso por vezes podia ser percebido como uma sensação de protagonismo, digo, excesso de protagonismo egóico, que me confundiu durante um bom tempo. Aliás, me confunde até hoje. "Que tipo de protagonismo o vadinho está buscando, com atitudes como aquela?" pensava eu. Questionado, ele mesmo quase sempre respondia com este termo aí de cima, que pode ser tudo, menos sinal propositivo de um protagonismo egóico.

Atuou na indústria, na música, no teatro e na vida com uma verdade crua, que muitas vezes achei que era mesmo carne viva. No bom emprego que tinha, falsear seus sentimentos não estava em seu repertório. E isso não costuma gerar boas relações com chefes e companheiros de trabalho no mundo corporativo - entristecedor mundo corporativo capitalista. Mas essa tristeza que refiro aqui  é minha - e trago até hoje dentro de mim. 

Com ele, e num período de intenso compartilhamento destas minhas tristezas, escutei um dia ele saindo de nossa casa de bicicleta, indo pro trabalho, dando berros lindos e sonoros de "Sou Livre! Sou Livre", ladeira abaixo, no bairro da cancela preta ainda quase rural, o dia ressoando muito mais interessante pela presença radiante dele. Ao final deste dia, sem haver comentado nada antes - nada! - , ele contou totalmente feliz que havia pedido demissão de seu emprego estável, bem remunerado, com bom plano de saúde e aposentadoria garantida. Carne viva. No bom sentido.

....

Vadinho tinha muitos irmãos, conheci razoavelmente bem seus pais. Assisti as reações de tristeza de vadinho quando seo Oswaldo pai se foi, e antes, quando tia Delfina partiu. Foram momentos de dor intensa que vi vadinho enfrentar. Sem pieguismos, sem choro pra fora. Mas também sem lamentos de tempo perdido. Acho que pelo fato de seu afeto ter sido sempre entregue e abençoado. Acompanhei vadinho várias vezes saindo de casa pra uma noitada firme, calibrado, e pedindo com respeito e rara formalidade, "bença, pai, bença, mãe".  Agora choro eu. A morte dentro da morte sempre nos confronta com a nossa, inevitavelmente, eu acho.

Eu queria muito a longevidade de vadinho. Meio que contava com ela pra gente revisitar momentos da história. Pra ele me contar que viu o pé de maracujá florescer de novo, que nossa plantação de couve havia virado uma plantação de borboletas: peladão, de braços abertos às seis da manhã, tomando banho gelado de mangueira no canteiro cheio de borboletas pousadas nele...

A morte de vadinho, aos sessenta e poucos, as vezes me recorda um tipo de remorso que carreguei por uns bons anos, de possivelmente ter influenciado demasiado o destino do Oswaldo, petroleiro demissionário. Afinal, naqueles momentos quem falava o tempo todo que queria ir embora era eu! E fui também: pedi demissão do mesmo emprego, onde nós havíamos nos conhecido, uns dois anos depois dele. Não sem antes passar por um longo processo depressivo para decidir e implementar a decisão. Por anos muitos eu busquei sondar se ele julgava sua própria decisão como precipitada, se faria novamente daquele jeito, etc. Ele respondia sorrindo: jémguémdêm....

Monday, October 4, 2021

Hay que endurecer, pero sin perder la ternura - parte 1

Endurecer porque? com o quê? quando? com quem? Ternura? qual ternura? como? até que ponto?


Prólogo

A parte filosófica dessa discussão é apoiada pelo belo texto do Nilton Bonder, A alma imoral, cuja adaptação para o teatro realizada pela Clarice Niskier emocionou-me a ponto de rever várias vezes a encenação, numa delas levando meu pai e minha mãe (acho que foi a última vez que saímos juntos para um programa cultural. Além, é claro, de reler inúmeras vezes o livro, que também já perdi a conta de quantos exemplares comprei e fui presenteando pelo caminho. No livro Nilton Bonder expõe a contradição entre os riscos de ser tolo e de ser cruel nas nossa relações humanas.

Partirei daqui, usando este desafio proposto por Bonder, ou seja, equilibrar os riscos entre querer saber as verdades (aqui numa simplificação possível para o "fugir de ser tolo"), porém também buscando evitar a crueldade em nossas relações, nesses casos originadas pelas nossas vivências destas verdades

A frase título fica como pano de fundo. Não há registro confiável de sua autoria, porém independente disto, é seguro supor que foi uma frase da maior relevância no contexto cultural no período do meu amadurecimento: décadas entre 1970 e 1990. Afinal, em termos gerais, venho me defrontando com este pensamento de forma recorrente, e acredito que o assunto mexe também com muita gente. Além de possibilitar uma rota para debates bastante interessantes. Vamos ao que me proponho

Endurecimento 

 Em dois meses eu perdi minha mãe e meu melhor amigo. Na verdade é bem mais do que isso: foram as duas pessoas com quem aprendi a amar. Não é que tenham me ensinado o que é o amor: simplesmente me ensinaram as muitas maneiras de amar, de tolerar e de viver uma vida amorosa, cada uma delas ao seu jeito, e muito diferentes entre si.

O amor como centro: é possível ter um filho predileto? E é possível não ter?

O amor de minha mãe me permitiu observar que uma pessoa singular pode ser amada de forma íntegra e integral, e que este amor não exclui qualquer outro amor. Traço este paralelo com as muitas vezes que minha mãe me acolheu como seu filho predileto, em momentos que não havia em mim a menor dúvida desta verdade. Entretanto, como filho de uma mãe que teve muitos filhos, não era raro algum de meus irmãos chegar em seguida e eu assistir a cena se repetir com este: minha mãe acolhia e dizia que este era seu filho predileto, e neste momento eu tinha também esta verdade como inquestionável. E nestes momentos eu pude vivenciar que ser predileto é uma expressão de amor que não conflita com outras predileções. Mas principalmente que o amor pode conter todas as predileções desta natureza, sem que a contradição seja maior do que o próprio amor que a gera. Assim vence (sempre venceu) o amor daquela mulher incrível, que muito mais histórias me legou.

Quando eu estava esperando meu segundo filho me perguntavam se agora eu queria um menino ou uma menina. A pergunta fazia pouco sentido pra mim, mas eu via como isso era importante para algumas pessoas. Para mim nunca foi importante. Da mesma maneira que, tempos depois, me perguntavam se eu tinha preferência por algum destes filhos. Isso não chegava a fazer sentido da forma que eu via o mundo e pela existência deles. Eles existem e são prediletos. Obrigado mamãe, isso eu acho que meu coração aprendeu com o teu.

Essa figura humana foi de uma ternura imensa durante toda sua vida, estou certo disso. Mas acho que teve enorme dificuldade de endurecer onde se sentia acuada. Aqui fica o gancho da pergunta "quando endurecer?"

Amores sem filhos

Vadinho era vadinho. Se autodenominava viralata, lambia a mão de quem o alimentava, mesmo quando sabia que iria "apanhar da mão que o alimentava" logo em seguida. E adorava chutar uma lata de lixo na madrugada. Não destas latas que tem lixo dentro e cujo chute espalha a sujeira pra todo lado. Vadinho chutava as latas de lixo internas da gente, aquelas onde a gente guarda as coisas que não quer mais, mas que não consegue deixar ir embora no fluxo da vida. Lá vinha ele querendo beijo na boca, querendo rir de si mesmo, declamar um poema do Bocage ou preparando uma comida para todos os que estivessem por perto. Minhas latas de lixo nunca mais foram as mesmas depois destas experiências....

Mas e a lata de lixo dele, vadinho? Assim como minha mãe, eu não me lembro de ver vadinho reclamando da vida, praticamente nunca. Veja bem: assisti ambos a reclamar de algum fato, de algum comportamento alheio, ainda que tenham sido expressões raras de algum tipo de desgosto. Mas de seu próprio destino e trajeto na vida, nenhum dos dois me deixou entrever suas próprias tristezas e amargores. Os dois aparentavam tamanho prazer e alegria na presença de outras pessoas queridas, que mesmo quando eu propunha algum tipo de reflexão sobre as histórias doídas da vida - que todos temos, quase sempre o assunto fluía para outro curso. As dores dele mesmo, vadinho levou ao seu ritmo, quase sem repartir com ninguém.

Teve muitos amores vadinho. Não conheci muitos desses. Apenas alguns, para poder ter uma ideia da amplitude afetiva e do poder de transformação que estes afetos tinham nos ambientes quando estávamos juntos. Filhos, assim, de barriga como minha mãe, ele não teve. Mas eu, que o apresentei como irmão muitas e muitas vezes, hoje acho que fui muito mais seu filho. De afeto, de aprendizado, de cumplicidade possível. Como acho que muitos entre nossos amigos também. Deixou muitos órfãos este vadinho...

E como foi que endureceu? As lições de endurecimento do vadinho ainda vão demandar muitas reflexões e elaborações. Eu o vi endurecer algumas vezes, tipo de ficar puto mesmo. Mas passava logo e não deixava rastro de rancor. Endureceu comigo umas poucas vezes, a maioria destas quando eu queria endurecer com ele sobre ele mesmo e seus cuidados com a vida. 

...

Acho que minha mãe e vadinho de certa forma não aprenderam a endurecer para a vida que sua existência lhes propôs. Claro que este é um julgamento meu, e propositadamente evitando entrar nas psicologias analíticas. Penso ser necessário para seguir na construção dos sentidos que procuro, mas ainda assim, é um julgamento que faço ao confrontar suas imensas ternuras com o sentido do título. Eles não perderam a ternura, estou certo disso. Mas compartilho a pergunta para quem os conheceu: endureceram quando era preciso?


Thursday, August 12, 2021

Mãe, um filho de mil homens e um quem sabe neo-curumim

 Poesia, boas histórias e a História são paixões que permanecem em meu caminho. Agora mais um autor se junta a outra das paixões, que são as amizades verdadeiras, ou seja, aquelas que sobrevivem como amizades autênticas às distâncias, ao tempo e aos destemperos...

Um amigo antigo fazia tempo já havia comentado sobre o escritor Valter Hugo Mãe e a delicia que é sua leitura. Confesso que não havia conseguido encaixar um de seus livros no meu destino até que um outro amigo, de forma involuntária, dobrasse a dica, ao carinhosamente emprestar sua casa para nossa estada por alguns dias, com uma linda e provocativa biblioteca. E lá estavam os mil homens, o filho e os demais personagens profundamente humanos, desajustados, laboriosamente enfrentando as vidas cheias das reviravoltas do dia a dia, das maiores e das menores, e... enfim, deliciosos mesmo os personagens do livro O filho de mil homens.

Leitura daquela que agarra a gente e que só soltamos ao terminar o livro, a narração nos faz enfrentar nossa própria alma na condição bizarra e peculiar de cada uma das personagens, porém sempre factível e, o pior, sempre propondo (ao menos para mim) uma identificação quase imediata, quase visceral. 

E aqui tem um salto importante: este tipo de identificação quase visceral tem feito parte de meu cotidiano desde os primeiros momentos em que enlacei minha vida por dentro da cultura em Portugal. Vivo desde então a me identificar com tantos e tão variados aspectos (aspetos?) da cultura, desde àquelas surpresas que se diluem nas palavras e formas de falar do cotidiano (casa de banho?), até aos mais óbvios à análise posterior, mas que nos surpreendem mesmo assim, passando pelo contato quase virginal com a História de Portugal numa perspetiva(!) mais ampla de um ignorante quase completo sobre o que se passou por aqui nas terras lusitanas, além dos cinco ou seis dados elementares e inevitáveis que nos apresentam nas escolas no Brasil.

Daí que este salto me levou para o livro que eu estava a ler antes de pegar este do Mãe para ler: O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, do Darcy Ribeiro (originalmente publicado em 1995). Ou de outra forma, o livro do Mãe ficou como "ensaduichado" pelo texto do Darcy Ribeiro em minha leitura. Em minha mente aconteceu que os mil homens do Mãe virassem como que mil milhões dos filhos todos do Brasil, fossem eles luso brasileiros, autóctones, brasileiros refundidos ou os simplesmente muito fudidos. De ontem, de hoje e os de amanhã... 



Uma frase do Darcy Ribeiro pra contextualizar: "A vida se assenta numa unidade matricêntrica de mulheres que parem filhos de vários homens. Apesar de toda a miséria, essa heroica mãe defende seus filhos e, ainda que com fome, arranja alguma coisa para pôr em suas bocas. Não tendo outro recurso, se junta a eles na exploração do lixo e na mendicância nas ruas das cidades. É incrível que o Brasil, que gosta tanto de falar de sua família cristã, não tenha olhos para ver e admirar essa mulher extraordinária em que se assenta toda a vida da gente pobre." (Ribeiro 2014:163)

Minha intenção neste texto foi, de alguma forma, motivar a leitura destes dois livros. Um deles é simplesmente delicioso, e o outro, eu acredito que seja essencial para qualquer debate consistente sobre as relações Brasil Portugal. Mesmo (e principalmente) sabendo das dores, iniquidades e consequências sociais e culturais da ligação que existe entre estes dois países, suas histórias interconectadas e suas pobrezas e decadências contemporâneas.

....

PSs:

1. No Wikipedia diz que o livro O filho de mil homens seria o "Magnum opus" do Valter Hugo Mãe. E trata o Darcy Ribeiro muito mais como um político do que como um antropólogo, citando en passant o livro O povo brasileiro de sua autoria. 

2. Lá pelo capítulo oito do livro do Mãe me deparo com um trecho que acendeu minha memória: "eu já li isto!". Claro, era o mesmo título que o meu amigo havia me mostrado e que eu abri ao acaso, avançando umas boas vinte páginas. Obrigado por mais isso, querido Sérgio!

3. Dada a proliferação de canais na internet onde os contrastes e humores das diferenças e semelhanças entre estas duas culturas, eu topo a tentativa de interpretação, debate e compartilhamento sobre estas e outras leituras, como esforço de "leitura comparada". Alguém se habilita, alguém topa? 

Saturday, June 12, 2021

despedidas...?

Uma querida amiga, vendo novas fotos minhas, de recantos que estou descobrindo na paisagem desocupada da serra da estrela, captou uma atmosfera daqueles momentos fotografados (melancólica, talvez?), e perguntou-me se eu estava a me despedir da serra, pois que eu me mudo daqui algumas semanas...

A sensibilidade e a proximidade que sinto com ela me emociona. Mais não fosse, a observação que de quem percebe e tem delicadeza de notar a emoção da gente, mesmo distante, é sempre um vínculo que se reforça, né? 

Porém eu quero buscar os sentidos (e os meus sentidos) de despedida. Em primeiro lugar, pela experiência recente de vender à distância a minha morada anterior sem me despedir dela de uma forma mais convencional, e também ao contar quantos endereços já tive na vida até agora, impossível não notar que estou regularmente a me despedir dos locais... Não tenho como dizer se eu vivencio mudanças de endereço mais do que o normal, ou se este recorte (nômade, pode ser?) talvez seja um importante fator de similaridades sociais: uns se movem menos na vida enquanto outros se movem mais, entre as muitas razões que consigo imaginar, tanto para um grupo como para o outro...

Em segundo lugar, penso que estou sim, num processo até certo ponto consciente, fazendo umas despedidas neste momento. A parte consciente busca despedida às pessoas que algum tipo de vínculo criamos por aqui. Mas isso está se mostrando bem fora do usual, tanto pela covid19 e suas restrições (mesmo que agora somente parciais por aqui), mas também pelo fato de que os vínculos afetivos destes últimos 15 meses de pandemia terem sido submetidos à provas e mudanças muito malucas, que ainda irão nos impactar por muitos anos. 

Depois, e talvez o mais profundo aqui, seja a crueza das despedidas que tantas mortes pela covid19 forçou, havendo ou não o momento da despedida. Porque de certa forma é isso, né? A despedida tem um momento que é interior, que a gente se despede de alguém ou alguma outra afetividade que aparentemente não irá mais se reencontrar... E quando há reciprocidade neste momento, então aí mesmo é uma despedida no sentido mais corrente que chamamos de despedida entre pessoas.

Voltando então para meu processo de despedida da serra da estrela, duas avenidas se abrem: com relação às pessoas, por mais que eu venha tentando estar junto com pessoas que eu sei que não estarão mais no meu cotidiano, eu não considero muito como despedida, porque penso que seguirei frequentando regularmente não só o local, mas as relações que aqui fizemos. Daí seria mais uma mudança de fase, uma nova organização de convivência, como novas frequencias e motivações, mas não uma despedida de fato.

Já com relação à serra em si, que foi a sutileza captada lá no início do meu texto, aí tem sim uma coisa interior da despedida unilateral... Mas, exatamente do que eu estaria me despedindo ? Em todos os meus planejamentos possíveis espero retornar muitas e muitas vezes à este local mágico, lindo e especial que é a serra da estrela.

Acredito que eu esteja meio que revisando uma espécie de lista de lugares que eu queria (quero!) conhecer de perto, mas que eu havia idealizado de visitar com outras pessoas, afinal são lugares que demandam esforços de conquistas (caminhadas, algumas longas, outras em subidas, etc), e que sempre tem outro sabor quando vivenciados com outras pessoas: o esforço, a conquista, a beleza rara da vista entocada, as delicadezas do compartilhar momentos de intimidade com a natureza intocada....

Por outro lado, a possibilidade de ir mapeando cada recanto desta serra, e também ir descobrindo que muitos destes recantos tem acesso bastante tranquilo a partir da estrada, vai trocando as excursões de descoberta, por uma rica agenda de locais com marcação do tipo: "tenho que trazer guilherme neste local", ou "uau, aqui a gente pode fazer um lual na lua cheia".

Então como resposta à minha amiga, penso que me despeço de duas coisas: uma é da virgindade dos locais que queria conhecer acompanhado pelo prazer da descoberta juntos (que fartura!). E outra, essa talvez mais fácil de perceber, é mesmo da minha vizinha serra da estrela, que hoje posso chegar em dez minutos e me entranhar em seus caminhos desertos, em suas qualidades afetivas de vizinha querida, de amiga, de mãe e de mestra. 


Monday, June 7, 2021

argumentação e decisão: o pensamento indutivo, o dedutivo e o intuitivo

 Aproveitando a onda de verdades e fake news, que vou simplificar no escorregadio "pós-verdade", um assunto me chamou a atenção:

O caso se deu numa conversa sobre vida extraterrestre e os possíveis contatos em talvez iminência....

O caso em si é valioso e merece aprofundamento, mas o que vou propor tem mais a ver com o título: metodologicamente podemos olhar métodos de estudo da realidade "convencionais" em indutivo e dedutivo. Uma parte do pensamento ocorre sem se enquadrar nesta classificação acadêmica. Já o qe sobressai desta possível classificação envolve muitos aspetos (e disputas) sobre uma fonte de conhecimento sobre a realidade (ou a verdade, mas prefiro fugir neste momento do debate do que é a verdade).

Estou chamando este conjunto de "ferramentas investigativas do domínio da realidade" que se localizam fora do pensamento dedutivo e/ou indutivo, de pensamento intuitivo. O melhor exemplo que penso se encaixa aqui foi uma amiga recente, que em conversa  comigo perguntou-me onde ficava o meu "orgão de percepção da verdade" 

Visando chegar na construção social disso aí, me parece perfeitamente válido a alegação do pensamento intuitivo em várias fases de investigação, de áreas também diversas. Me parece que na sociologia contemporânea, a reflexividade (e seus reflexos) ladeia com movimentos ligados à espiritualidade (a qualidade holística, por exemplo), à religião (muitas delas, senão todas), todo o vasto campo do interacionismo simbólico, e, claro, questões ligadas à infraestrutura e a super estrutura. 

A liberdade individual para pensar, elaborar, argumentar e acreditar ou não que faremos contato, que viemos de extraterrestres, que sejamos extraterrestres nós mesmo, ou qualquer derivação ou combinação com a dita espiritualidade reabre (ou mantém sob controle?) a deliberação pessoal racional acerca das próprias crenças. Entretanto o caminho argumentativo para suportar uma posição social que envolve escolha é reflexivo por definição, e além disso,  as escolhas e o processo deliberatório estão bastante sobrepostos na fronteira de estudos que envolve a psicologia, a psicologia social, alguma parte à psiquiatria, e a outros desvios psicopáticos relacionados ao poder, dentro e/ou fora do sistema capitalista de produção). 


TALVEZ ISTO SEJA DOMÍNIO DA PSICOLOGIA SOCIAL?