Saturday, October 9, 2021

Hay que endurecer... - parte 2

Longevidade

Acho que fica fácil encaixar a longevidade numa daquelas ideias que nos une a todos, enquanto uma coisa que todos queremos, e que segue sendo um mistério muito individual. Coletivamente faz parte de um certo tipo específico de tabu, derivado do tabu básico que é a morte (ou melhor, o assunto morte). Minha mãe morreu com 95 anos, completaria 96 no dia de hoje. Longeva, sem dúvida, pelos padrões vigentes. E terna. De certa forma penso a longevidade como representada pela ternura, pela resiliência, no absorver as pancadas da vida sem deformar a parte mais rígida do ser. Lá segue marilita recebendo pancada atrás de pancada, criando os calos que todo organismo cria pela repetição, renovando e recriando sua ternura por um longo, penoso e generoso tempo....

Como generoso é julgamento, confesso que a generosidade aqui foi comigo, foi na minha conta. Pude ter muitos ciclos de vida revelados e relevados por aquele coração imenso, aquele olhar curioso e discreto que, sempre que podia, escutava minhas histórias, minhas raivas e meus muitos quase gols, sem nunca repreender, sem reprimir, quase sem julgar. A vivência que vou usar para ilustrar aqui eu a compartilho com alguns dos irmãos. Quando eu relatava algum conflito mais endurecido, uma raiva qualquer que ainda permanecia em minha couraça, ou descrevia algum conflito aberto de meu dia, ela muitas vezes perguntava docemente se a outra pessoa de minha contenda estava bem. Quase sempre antes de perguntar se eu estava bem. 

Este lado de sua ternura nem sempre se alinhava de imediato nas minhas expectativas. Eu contava, por exemplo, que o ciclista havia passado com a roda da bicicleta em cima do meu pé, e quando meu lamento havia escorrido, ela me pergunta se o ciclista ficou bem??? Porém, permite gentilmente que o assunto gire sobre si mesmo, em revisão factual, em revista narrativa e, sobretudo, em rearrumação afetiva. Afinal, era minha mãe comentando. Daí que a generosidade também era com o ambiente todo à sua volta.

Jémguémdêm   

Oswaldo irradiava ao ambiente em volta. Era muito difícil não notar que ele estava por ali. Isso por vezes podia ser percebido como uma sensação de protagonismo, digo, excesso de protagonismo egóico, que me confundiu durante um bom tempo. Aliás, me confunde até hoje. "Que tipo de protagonismo o vadinho está buscando, com atitudes como aquela?" pensava eu. Questionado, ele mesmo quase sempre respondia com este termo aí de cima, que pode ser tudo, menos sinal propositivo de um protagonismo egóico.

Atuou na indústria, na música, no teatro e na vida com uma verdade crua, que muitas vezes achei que era mesmo carne viva. No bom emprego que tinha, falsear seus sentimentos não estava em seu repertório. E isso não costuma gerar boas relações com chefes e companheiros de trabalho no mundo corporativo - entristecedor mundo corporativo capitalista. Mas essa tristeza que refiro aqui  é minha - e trago até hoje dentro de mim. 

Com ele, e num período de intenso compartilhamento destas minhas tristezas, escutei um dia ele saindo de nossa casa de bicicleta, indo pro trabalho, dando berros lindos e sonoros de "Sou Livre! Sou Livre", ladeira abaixo, no bairro da cancela preta ainda quase rural, o dia ressoando muito mais interessante pela presença radiante dele. Ao final deste dia, sem haver comentado nada antes - nada! - , ele contou totalmente feliz que havia pedido demissão de seu emprego estável, bem remunerado, com bom plano de saúde e aposentadoria garantida. Carne viva. No bom sentido.

....

Vadinho tinha muitos irmãos, conheci razoavelmente bem seus pais. Assisti as reações de tristeza de vadinho quando seo Oswaldo pai se foi, e antes, quando tia Delfina partiu. Foram momentos de dor intensa que vi vadinho enfrentar. Sem pieguismos, sem choro pra fora. Mas também sem lamentos de tempo perdido. Acho que pelo fato de seu afeto ter sido sempre entregue e abençoado. Acompanhei vadinho várias vezes saindo de casa pra uma noitada firme, calibrado, e pedindo com respeito e rara formalidade, "bença, pai, bença, mãe".  Agora choro eu. A morte dentro da morte sempre nos confronta com a nossa, inevitavelmente, eu acho.

Eu queria muito a longevidade de vadinho. Meio que contava com ela pra gente revisitar momentos da história. Pra ele me contar que viu o pé de maracujá florescer de novo, que nossa plantação de couve havia virado uma plantação de borboletas: peladão, de braços abertos às seis da manhã, tomando banho gelado de mangueira no canteiro cheio de borboletas pousadas nele...

A morte de vadinho, aos sessenta e poucos, as vezes me recorda um tipo de remorso que carreguei por uns bons anos, de possivelmente ter influenciado demasiado o destino do Oswaldo, petroleiro demissionário. Afinal, naqueles momentos quem falava o tempo todo que queria ir embora era eu! E fui também: pedi demissão do mesmo emprego, onde nós havíamos nos conhecido, uns dois anos depois dele. Não sem antes passar por um longo processo depressivo para decidir e implementar a decisão. Por anos muitos eu busquei sondar se ele julgava sua própria decisão como precipitada, se faria novamente daquele jeito, etc. Ele respondia sorrindo: jémguémdêm....

Monday, October 4, 2021

Hay que endurecer, pero sin perder la ternura - parte 1

Endurecer porque? com o quê? quando? com quem? Ternura? qual ternura? como? até que ponto?


Prólogo

A parte filosófica dessa discussão é apoiada pelo belo texto do Nilton Bonder, A alma imoral, cuja adaptação para o teatro realizada pela Clarice Niskier emocionou-me a ponto de rever várias vezes a encenação, numa delas levando meu pai e minha mãe (acho que foi a última vez que saímos juntos para um programa cultural. Além, é claro, de reler inúmeras vezes o livro, que também já perdi a conta de quantos exemplares comprei e fui presenteando pelo caminho. No livro Nilton Bonder expõe a contradição entre os riscos de ser tolo e de ser cruel nas nossa relações humanas.

Partirei daqui, usando este desafio proposto por Bonder, ou seja, equilibrar os riscos entre querer saber as verdades (aqui numa simplificação possível para o "fugir de ser tolo"), porém também buscando evitar a crueldade em nossas relações, nesses casos originadas pelas nossas vivências destas verdades

A frase título fica como pano de fundo. Não há registro confiável de sua autoria, porém independente disto, é seguro supor que foi uma frase da maior relevância no contexto cultural no período do meu amadurecimento: décadas entre 1970 e 1990. Afinal, em termos gerais, venho me defrontando com este pensamento de forma recorrente, e acredito que o assunto mexe também com muita gente. Além de possibilitar uma rota para debates bastante interessantes. Vamos ao que me proponho

Endurecimento 

 Em dois meses eu perdi minha mãe e meu melhor amigo. Na verdade é bem mais do que isso: foram as duas pessoas com quem aprendi a amar. Não é que tenham me ensinado o que é o amor: simplesmente me ensinaram as muitas maneiras de amar, de tolerar e de viver uma vida amorosa, cada uma delas ao seu jeito, e muito diferentes entre si.

O amor como centro: é possível ter um filho predileto? E é possível não ter?

O amor de minha mãe me permitiu observar que uma pessoa singular pode ser amada de forma íntegra e integral, e que este amor não exclui qualquer outro amor. Traço este paralelo com as muitas vezes que minha mãe me acolheu como seu filho predileto, em momentos que não havia em mim a menor dúvida desta verdade. Entretanto, como filho de uma mãe que teve muitos filhos, não era raro algum de meus irmãos chegar em seguida e eu assistir a cena se repetir com este: minha mãe acolhia e dizia que este era seu filho predileto, e neste momento eu tinha também esta verdade como inquestionável. E nestes momentos eu pude vivenciar que ser predileto é uma expressão de amor que não conflita com outras predileções. Mas principalmente que o amor pode conter todas as predileções desta natureza, sem que a contradição seja maior do que o próprio amor que a gera. Assim vence (sempre venceu) o amor daquela mulher incrível, que muito mais histórias me legou.

Quando eu estava esperando meu segundo filho me perguntavam se agora eu queria um menino ou uma menina. A pergunta fazia pouco sentido pra mim, mas eu via como isso era importante para algumas pessoas. Para mim nunca foi importante. Da mesma maneira que, tempos depois, me perguntavam se eu tinha preferência por algum destes filhos. Isso não chegava a fazer sentido da forma que eu via o mundo e pela existência deles. Eles existem e são prediletos. Obrigado mamãe, isso eu acho que meu coração aprendeu com o teu.

Essa figura humana foi de uma ternura imensa durante toda sua vida, estou certo disso. Mas acho que teve enorme dificuldade de endurecer onde se sentia acuada. Aqui fica o gancho da pergunta "quando endurecer?"

Amores sem filhos

Vadinho era vadinho. Se autodenominava viralata, lambia a mão de quem o alimentava, mesmo quando sabia que iria "apanhar da mão que o alimentava" logo em seguida. E adorava chutar uma lata de lixo na madrugada. Não destas latas que tem lixo dentro e cujo chute espalha a sujeira pra todo lado. Vadinho chutava as latas de lixo internas da gente, aquelas onde a gente guarda as coisas que não quer mais, mas que não consegue deixar ir embora no fluxo da vida. Lá vinha ele querendo beijo na boca, querendo rir de si mesmo, declamar um poema do Bocage ou preparando uma comida para todos os que estivessem por perto. Minhas latas de lixo nunca mais foram as mesmas depois destas experiências....

Mas e a lata de lixo dele, vadinho? Assim como minha mãe, eu não me lembro de ver vadinho reclamando da vida, praticamente nunca. Veja bem: assisti ambos a reclamar de algum fato, de algum comportamento alheio, ainda que tenham sido expressões raras de algum tipo de desgosto. Mas de seu próprio destino e trajeto na vida, nenhum dos dois me deixou entrever suas próprias tristezas e amargores. Os dois aparentavam tamanho prazer e alegria na presença de outras pessoas queridas, que mesmo quando eu propunha algum tipo de reflexão sobre as histórias doídas da vida - que todos temos, quase sempre o assunto fluía para outro curso. As dores dele mesmo, vadinho levou ao seu ritmo, quase sem repartir com ninguém.

Teve muitos amores vadinho. Não conheci muitos desses. Apenas alguns, para poder ter uma ideia da amplitude afetiva e do poder de transformação que estes afetos tinham nos ambientes quando estávamos juntos. Filhos, assim, de barriga como minha mãe, ele não teve. Mas eu, que o apresentei como irmão muitas e muitas vezes, hoje acho que fui muito mais seu filho. De afeto, de aprendizado, de cumplicidade possível. Como acho que muitos entre nossos amigos também. Deixou muitos órfãos este vadinho...

E como foi que endureceu? As lições de endurecimento do vadinho ainda vão demandar muitas reflexões e elaborações. Eu o vi endurecer algumas vezes, tipo de ficar puto mesmo. Mas passava logo e não deixava rastro de rancor. Endureceu comigo umas poucas vezes, a maioria destas quando eu queria endurecer com ele sobre ele mesmo e seus cuidados com a vida. 

...

Acho que minha mãe e vadinho de certa forma não aprenderam a endurecer para a vida que sua existência lhes propôs. Claro que este é um julgamento meu, e propositadamente evitando entrar nas psicologias analíticas. Penso ser necessário para seguir na construção dos sentidos que procuro, mas ainda assim, é um julgamento que faço ao confrontar suas imensas ternuras com o sentido do título. Eles não perderam a ternura, estou certo disso. Mas compartilho a pergunta para quem os conheceu: endureceram quando era preciso?