Tuesday, July 18, 2023

correria

antigamente usava-se mais frequentemente a palavra correria. De vez em quando era uma correria danada, e em seus usos mais comuns tinha duas acepções: para denotar pressa em aprontar algo ou para se referir a uma fuga. Parece que atualmente, lá como cá, tanto uma acepção como outra se inseriram de tal forma no cotidiano que a palavra largou esses significados pelo caminho, como que despojos de uma fuga com pressa. (aliás: toda fuga acontece com pressa?)

Lembro da primeira vez que escutei o som de um tiro na rua, lá pela década de 1980 ou 90, quando a violência urbana começou a se espalhar em definitivo por todas as áreas da cidade do Rio de Janeiro. Naquele tempo, pasmem, não era comum as pessoas falarem sobre armas e o povo brasileiro era tido como pacífico, apesar das intensas violências do submundo da ditadura torturante que alguns, hoje, paradoxalmente, admiram e pedem o retorno. 

Depois o som dos tiros começou a ficar cada vez mais comum, até meio que se incorporar aos sons usuais da cidade. Deve ter contribuído para essa minha sensação o fato de eu ter me mudado para perto da famosa favela do morro de D. Marta, no período da disputa entre facções (Cabeludo x Ananias, eu acho...), numa incrível geografia em que essa favela se posiciona (e ainda é assim) colada ao terreno onde estava (e ainda está) a residência do prefeito daquela cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. A trilha sonora, perfeita para esse tempo é do Gilberto Gil: "Nos barracos da cidade", onde "ninguém mais tem ilusão no poder da autoridade, que se pode não faz questão, e se faz questão não consegue controlar o tubarão".

Lembro também da primeira vez que vi de onde vinham os disparos: circulando de carro pelas ruas do bairro de Santa Teresa um policial disparava, não sei para onde, com uma expressão relativamente tranquila, eu diria como quem caça passarinho. "Acertei? Nem sei..." Entre esses eventos houve também alguns "espetáculos" das balas traçantes, fenómeno tecno-midiático-militar-criminoso que divertia o horror social de uma quantidade insana de tiros, pela beleza coletiva das linhas vermelhas dirigidas aos céus. Dava até gosto de ver....

Aqui na Europa parece que eles preferem os tiros mais concentrados nos tempos das guerras que fazem regularmente entre os povos. Daí que agora é na Ukrania, ainda pouco era no Kossovo, Tchechênia... um pouco antes por toda a Europa na segunda guerra mundial (esse mundial já denota um eurocentrismo fantástico, né não?)

....

A correria segue, parece que cada vez mais incorporada ao processo do cotidiano. Daí sobra a deixa pra poesia de Drummond (1938):

"Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva. 
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição 
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

O poema completo, na voz de Caetano Veloso (e seus comentários):
https://www.youtube.com/watch?v=AqNjbqQwOzE

também, e recomendo, alguma coisa de Vinicius, aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=Ig0wlf4jJ9Q

... e isso tudo, sem correria....