Poesia, boas histórias e a História são paixões que permanecem em meu caminho. Agora mais um autor se junta a outra das paixões, que são as amizades verdadeiras, ou seja, aquelas que sobrevivem como amizades autênticas às distâncias, ao tempo e aos destemperos...
Um amigo antigo fazia tempo já havia comentado sobre o escritor Valter Hugo Mãe e a delicia que é sua leitura. Confesso que não havia conseguido encaixar um de seus livros no meu destino até que um outro amigo, de forma involuntária, dobrasse a dica, ao carinhosamente emprestar sua casa para nossa estada por alguns dias, com uma linda e provocativa biblioteca. E lá estavam os mil homens, o filho e os demais personagens profundamente humanos, desajustados, laboriosamente enfrentando as vidas cheias das reviravoltas do dia a dia, das maiores e das menores, e... enfim, deliciosos mesmo os personagens do livro O filho de mil homens.
Leitura daquela que agarra a gente e que só soltamos ao terminar o livro, a narração nos faz enfrentar nossa própria alma na condição bizarra e peculiar de cada uma das personagens, porém sempre factível e, o pior, sempre propondo (ao menos para mim) uma identificação quase imediata, quase visceral.
E aqui tem um salto importante: este tipo de identificação quase visceral tem feito parte de meu cotidiano desde os primeiros momentos em que enlacei minha vida por dentro da cultura em Portugal. Vivo desde então a me identificar com tantos e tão variados aspectos (aspetos?) da cultura, desde àquelas surpresas que se diluem nas palavras e formas de falar do cotidiano (casa de banho?), até aos mais óbvios à análise posterior, mas que nos surpreendem mesmo assim, passando pelo contato quase virginal com a História de Portugal numa perspetiva(!) mais ampla de um ignorante quase completo sobre o que se passou por aqui nas terras lusitanas, além dos cinco ou seis dados elementares e inevitáveis que nos apresentam nas escolas no Brasil.
Daí que este salto me levou para o livro que eu estava a ler antes de pegar este do Mãe para ler: O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, do Darcy Ribeiro (originalmente publicado em 1995). Ou de outra forma, o livro do Mãe ficou como "ensaduichado" pelo texto do Darcy Ribeiro em minha leitura. Em minha mente aconteceu que os mil homens do Mãe virassem como que mil milhões dos filhos todos do Brasil, fossem eles luso brasileiros, autóctones, brasileiros refundidos ou os simplesmente muito fudidos. De ontem, de hoje e os de amanhã...
Uma frase do Darcy Ribeiro pra contextualizar: "A vida se assenta numa unidade matricêntrica de mulheres que parem filhos de vários homens. Apesar de toda a miséria, essa heroica mãe defende seus filhos e, ainda que com fome, arranja alguma coisa para pôr em suas bocas. Não tendo outro recurso, se junta a eles na exploração do lixo e na mendicância nas ruas das cidades. É incrível que o Brasil, que gosta tanto de falar de sua família cristã, não tenha olhos para ver e admirar essa mulher extraordinária em que se assenta toda a vida da gente pobre." (Ribeiro 2014:163)
Minha intenção neste texto foi, de alguma forma, motivar a leitura destes dois livros. Um deles é simplesmente delicioso, e o outro, eu acredito que seja essencial para qualquer debate consistente sobre as relações Brasil Portugal. Mesmo (e principalmente) sabendo das dores, iniquidades e consequências sociais e culturais da ligação que existe entre estes dois países, suas histórias interconectadas e suas pobrezas e decadências contemporâneas.
....
PSs:
1. No Wikipedia diz que o livro O filho de mil homens seria o "Magnum opus" do Valter Hugo Mãe. E trata o Darcy Ribeiro muito mais como um político do que como um antropólogo, citando en passant o livro O povo brasileiro de sua autoria.
2. Lá pelo capítulo oito do livro do Mãe me deparo com um trecho que acendeu minha memória: "eu já li isto!". Claro, era o mesmo título que o meu amigo havia me mostrado e que eu abri ao acaso, avançando umas boas vinte páginas. Obrigado por mais isso, querido Sérgio!
3. Dada a proliferação de canais na internet onde os contrastes e humores das diferenças e semelhanças entre estas duas culturas, eu topo a tentativa de interpretação, debate e compartilhamento sobre estas e outras leituras, como esforço de "leitura comparada". Alguém se habilita, alguém topa?
No comments:
Post a Comment
Por favor seja razoável em seus comentários: evite grosserias, rudezas e coisas assim.
Na dúvida, lembre-se que gentileza gera gentileza, e, parafraseando prof Cortella, também gente lesa gera gente lesa!