Monday, October 4, 2021

Hay que endurecer, pero sin perder la ternura - parte 1

Endurecer porque? com o quê? quando? com quem? Ternura? qual ternura? como? até que ponto?


Prólogo

A parte filosófica dessa discussão é apoiada pelo belo texto do Nilton Bonder, A alma imoral, cuja adaptação para o teatro realizada pela Clarice Niskier emocionou-me a ponto de rever várias vezes a encenação, numa delas levando meu pai e minha mãe (acho que foi a última vez que saímos juntos para um programa cultural. Além, é claro, de reler inúmeras vezes o livro, que também já perdi a conta de quantos exemplares comprei e fui presenteando pelo caminho. No livro Nilton Bonder expõe a contradição entre os riscos de ser tolo e de ser cruel nas nossa relações humanas.

Partirei daqui, usando este desafio proposto por Bonder, ou seja, equilibrar os riscos entre querer saber as verdades (aqui numa simplificação possível para o "fugir de ser tolo"), porém também buscando evitar a crueldade em nossas relações, nesses casos originadas pelas nossas vivências destas verdades

A frase título fica como pano de fundo. Não há registro confiável de sua autoria, porém independente disto, é seguro supor que foi uma frase da maior relevância no contexto cultural no período do meu amadurecimento: décadas entre 1970 e 1990. Afinal, em termos gerais, venho me defrontando com este pensamento de forma recorrente, e acredito que o assunto mexe também com muita gente. Além de possibilitar uma rota para debates bastante interessantes. Vamos ao que me proponho

Endurecimento 

 Em dois meses eu perdi minha mãe e meu melhor amigo. Na verdade é bem mais do que isso: foram as duas pessoas com quem aprendi a amar. Não é que tenham me ensinado o que é o amor: simplesmente me ensinaram as muitas maneiras de amar, de tolerar e de viver uma vida amorosa, cada uma delas ao seu jeito, e muito diferentes entre si.

O amor como centro: é possível ter um filho predileto? E é possível não ter?

O amor de minha mãe me permitiu observar que uma pessoa singular pode ser amada de forma íntegra e integral, e que este amor não exclui qualquer outro amor. Traço este paralelo com as muitas vezes que minha mãe me acolheu como seu filho predileto, em momentos que não havia em mim a menor dúvida desta verdade. Entretanto, como filho de uma mãe que teve muitos filhos, não era raro algum de meus irmãos chegar em seguida e eu assistir a cena se repetir com este: minha mãe acolhia e dizia que este era seu filho predileto, e neste momento eu tinha também esta verdade como inquestionável. E nestes momentos eu pude vivenciar que ser predileto é uma expressão de amor que não conflita com outras predileções. Mas principalmente que o amor pode conter todas as predileções desta natureza, sem que a contradição seja maior do que o próprio amor que a gera. Assim vence (sempre venceu) o amor daquela mulher incrível, que muito mais histórias me legou.

Quando eu estava esperando meu segundo filho me perguntavam se agora eu queria um menino ou uma menina. A pergunta fazia pouco sentido pra mim, mas eu via como isso era importante para algumas pessoas. Para mim nunca foi importante. Da mesma maneira que, tempos depois, me perguntavam se eu tinha preferência por algum destes filhos. Isso não chegava a fazer sentido da forma que eu via o mundo e pela existência deles. Eles existem e são prediletos. Obrigado mamãe, isso eu acho que meu coração aprendeu com o teu.

Essa figura humana foi de uma ternura imensa durante toda sua vida, estou certo disso. Mas acho que teve enorme dificuldade de endurecer onde se sentia acuada. Aqui fica o gancho da pergunta "quando endurecer?"

Amores sem filhos

Vadinho era vadinho. Se autodenominava viralata, lambia a mão de quem o alimentava, mesmo quando sabia que iria "apanhar da mão que o alimentava" logo em seguida. E adorava chutar uma lata de lixo na madrugada. Não destas latas que tem lixo dentro e cujo chute espalha a sujeira pra todo lado. Vadinho chutava as latas de lixo internas da gente, aquelas onde a gente guarda as coisas que não quer mais, mas que não consegue deixar ir embora no fluxo da vida. Lá vinha ele querendo beijo na boca, querendo rir de si mesmo, declamar um poema do Bocage ou preparando uma comida para todos os que estivessem por perto. Minhas latas de lixo nunca mais foram as mesmas depois destas experiências....

Mas e a lata de lixo dele, vadinho? Assim como minha mãe, eu não me lembro de ver vadinho reclamando da vida, praticamente nunca. Veja bem: assisti ambos a reclamar de algum fato, de algum comportamento alheio, ainda que tenham sido expressões raras de algum tipo de desgosto. Mas de seu próprio destino e trajeto na vida, nenhum dos dois me deixou entrever suas próprias tristezas e amargores. Os dois aparentavam tamanho prazer e alegria na presença de outras pessoas queridas, que mesmo quando eu propunha algum tipo de reflexão sobre as histórias doídas da vida - que todos temos, quase sempre o assunto fluía para outro curso. As dores dele mesmo, vadinho levou ao seu ritmo, quase sem repartir com ninguém.

Teve muitos amores vadinho. Não conheci muitos desses. Apenas alguns, para poder ter uma ideia da amplitude afetiva e do poder de transformação que estes afetos tinham nos ambientes quando estávamos juntos. Filhos, assim, de barriga como minha mãe, ele não teve. Mas eu, que o apresentei como irmão muitas e muitas vezes, hoje acho que fui muito mais seu filho. De afeto, de aprendizado, de cumplicidade possível. Como acho que muitos entre nossos amigos também. Deixou muitos órfãos este vadinho...

E como foi que endureceu? As lições de endurecimento do vadinho ainda vão demandar muitas reflexões e elaborações. Eu o vi endurecer algumas vezes, tipo de ficar puto mesmo. Mas passava logo e não deixava rastro de rancor. Endureceu comigo umas poucas vezes, a maioria destas quando eu queria endurecer com ele sobre ele mesmo e seus cuidados com a vida. 

...

Acho que minha mãe e vadinho de certa forma não aprenderam a endurecer para a vida que sua existência lhes propôs. Claro que este é um julgamento meu, e propositadamente evitando entrar nas psicologias analíticas. Penso ser necessário para seguir na construção dos sentidos que procuro, mas ainda assim, é um julgamento que faço ao confrontar suas imensas ternuras com o sentido do título. Eles não perderam a ternura, estou certo disso. Mas compartilho a pergunta para quem os conheceu: endureceram quando era preciso?


3 comments:

  1. Sua mãezinha não a conheci.. conhecendo vc e Renato, os prediletos, sei que foi maezona e fez dos filhos uns fofos, educados, amados e amantes... Vadinho, um passarinho, uma pessoa linda e inesquecível! Concordo que não aprenderam a endurecer para a vida. E, você, Pedro, é um lindo e sensível amigo que a vida me deu. TE AMO

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  2. Li, gostei muito e acho que consigo agora conhecer um pouco mais do vadinho e do meu irmão.
    Com o vadinho esbarrei algumas vezes na vida, marcantes por aquela presença que irradiava. Mas não cheguei a conhecê-lo e agora que vejo um tiquinho a mais dele fico sentido por não ter chegado mais. Que seu espectro seja tão radiante quanto!
    Do meu irmão, vou descobrindo um tantinho a cada dia, quando a gente vai se mostrando, ou melhor, se expondo à mostra. Que bom uma Live semanal que aproxima esta irmandade pelas ondas internéticas, tão nocivas quanto benéficas neste novo cenário que todos vivemos.
    Que felicidade ver que essa mãe, soube mesmo ter a todos nós como prediletos. E que bom continuar compartilhando esse amor infindo.
    Aprendi a endurecer por outras (F)fontes, tão perto quanto. Sempre um processo dolorido. Necessário? Talvez... sabe-se lá...
    Da sua frase título sempre me perguntei se o Hay é o melhor verbo para as escolhas existenciais. Vadinho e mamãe devem estar vendo a gente lá de cima, torcendo por nós com toda a generosidade da alma para que a gente consiga fazer as próprias e individualíssimas escolhas.
    Amanhã é aniversário de 96 dessa mãe, que agora se foi daqui, mas continua aqui. Festeje-mo-la!

    Pela falta de uma resposta possível para o tema proposto, lembro de outra frase.
    Navegar é preciso viver não é preciso.
    😘

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  3. Pedrão, amigo! Te conheço há muito pouco, certamente que falta ainda muitos milhões de minutos para poder chegar perto do que podes estar sintiendo nestes momentos de perdas e reflexões. O teu texto encurta em alguns milhões esses minutos, mas ainda quero aguardar a segunda parte deste "endurecer" para saber que tanto fiquei perto do teu aperto. Por enquanto, espero que ao leeres este breve e pouco profundo comentário, sintas a solidariedade e a saudade companheira de outro Homem que endurece e que busca a ternura da existência trascendente. Abraço!!

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