Longevidade
Acho que fica fácil encaixar a longevidade numa daquelas ideias que nos une a todos, enquanto uma coisa que todos queremos, e que segue sendo um mistério muito individual. Coletivamente faz parte de um certo tipo específico de tabu, derivado do tabu básico que é a morte (ou melhor, o assunto morte). Minha mãe morreu com 95 anos, completaria 96 no dia de hoje. Longeva, sem dúvida, pelos padrões vigentes. E terna. De certa forma penso a longevidade como representada pela ternura, pela resiliência, no absorver as pancadas da vida sem deformar a parte mais rígida do ser. Lá segue marilita recebendo pancada atrás de pancada, criando os calos que todo organismo cria pela repetição, renovando e recriando sua ternura por um longo, penoso e generoso tempo....
Como generoso é julgamento, confesso que a generosidade aqui foi comigo, foi na minha conta. Pude ter muitos ciclos de vida revelados e relevados por aquele coração imenso, aquele olhar curioso e discreto que, sempre que podia, escutava minhas histórias, minhas raivas e meus muitos quase gols, sem nunca repreender, sem reprimir, quase sem julgar. A vivência que vou usar para ilustrar aqui eu a compartilho com alguns dos irmãos. Quando eu relatava algum conflito mais endurecido, uma raiva qualquer que ainda permanecia em minha couraça, ou descrevia algum conflito aberto de meu dia, ela muitas vezes perguntava docemente se a outra pessoa de minha contenda estava bem. Quase sempre antes de perguntar se eu estava bem.
Este lado de sua ternura nem sempre se alinhava de imediato nas minhas expectativas. Eu contava, por exemplo, que o ciclista havia passado com a roda da bicicleta em cima do meu pé, e quando meu lamento havia escorrido, ela me pergunta se o ciclista ficou bem??? Porém, permite gentilmente que o assunto gire sobre si mesmo, em revisão factual, em revista narrativa e, sobretudo, em rearrumação afetiva. Afinal, era minha mãe comentando. Daí que a generosidade também era com o ambiente todo à sua volta.
Jémguémdêm
Oswaldo irradiava ao ambiente em volta. Era muito difícil não notar que ele estava por ali. Isso por vezes podia ser percebido como uma sensação de protagonismo, digo, excesso de protagonismo egóico, que me confundiu durante um bom tempo. Aliás, me confunde até hoje. "Que tipo de protagonismo o vadinho está buscando, com atitudes como aquela?" pensava eu. Questionado, ele mesmo quase sempre respondia com este termo aí de cima, que pode ser tudo, menos sinal propositivo de um protagonismo egóico.
Atuou na indústria, na música, no teatro e na vida com uma verdade crua, que muitas vezes achei que era mesmo carne viva. No bom emprego que tinha, falsear seus sentimentos não estava em seu repertório. E isso não costuma gerar boas relações com chefes e companheiros de trabalho no mundo corporativo - entristecedor mundo corporativo capitalista. Mas essa tristeza que refiro aqui é minha - e trago até hoje dentro de mim.
Com ele, e num período de intenso compartilhamento destas minhas tristezas, escutei um dia ele saindo de nossa casa de bicicleta, indo pro trabalho, dando berros lindos e sonoros de "Sou Livre! Sou Livre", ladeira abaixo, no bairro da cancela preta ainda quase rural, o dia ressoando muito mais interessante pela presença radiante dele. Ao final deste dia, sem haver comentado nada antes - nada! - , ele contou totalmente feliz que havia pedido demissão de seu emprego estável, bem remunerado, com bom plano de saúde e aposentadoria garantida. Carne viva. No bom sentido.
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Vadinho tinha muitos irmãos, conheci razoavelmente bem seus pais. Assisti as reações de tristeza de vadinho quando seo Oswaldo pai se foi, e antes, quando tia Delfina partiu. Foram momentos de dor intensa que vi vadinho enfrentar. Sem pieguismos, sem choro pra fora. Mas também sem lamentos de tempo perdido. Acho que pelo fato de seu afeto ter sido sempre entregue e abençoado. Acompanhei vadinho várias vezes saindo de casa pra uma noitada firme, calibrado, e pedindo com respeito e rara formalidade, "bença, pai, bença, mãe". Agora choro eu. A morte dentro da morte sempre nos confronta com a nossa, inevitavelmente, eu acho.
Eu queria muito a longevidade de vadinho. Meio que contava com ela pra gente revisitar momentos da história. Pra ele me contar que viu o pé de maracujá florescer de novo, que nossa plantação de couve havia virado uma plantação de borboletas: peladão, de braços abertos às seis da manhã, tomando banho gelado de mangueira no canteiro cheio de borboletas pousadas nele...
A morte de vadinho, aos sessenta e poucos, as vezes me recorda um tipo de remorso que carreguei por uns bons anos, de possivelmente ter influenciado demasiado o destino do Oswaldo, petroleiro demissionário. Afinal, naqueles momentos quem falava o tempo todo que queria ir embora era eu! E fui também: pedi demissão do mesmo emprego, onde nós havíamos nos conhecido, uns dois anos depois dele. Não sem antes passar por um longo processo depressivo para decidir e implementar a decisão. Por anos muitos eu busquei sondar se ele julgava sua própria decisão como precipitada, se faria novamente daquele jeito, etc. Ele respondia sorrindo: jémguémdêm....
Que saudades daquela casa na Cancela Preta!!! Ríamos, dançavamos, cantávamos ... era muito amor 💘 e as festinhas top!!!! Osvaldinho, homem de coração bom, seu sorriso espalhava amor...
ReplyDeleteAinda bem, amigo Pedro, que fizemos parte disso tudo...
ReplyDeleteEu fico me perguntando… quando que o Oswaldo deixou de ser essencial na minha vida? Quando? A troco de que? Sob que circunstâncias? Que cotidiano me tragou? Isso me confunde e entristece. De qualquer forma sempre pude olhar pra trás e rastrear nossas histórias. Eu tinha parâmetro. Isso de muito me valeu. Meu eterno agradecimento. Muita sorte alguém como eu poder ter sido dele tão próximo.
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