Gosto cada vez mais das palavras. Machado, Saramago, Quintana sempre me saborearam presenteadamente. E Bakhtin e Freud me ajudaram na permanente busca de um ponto de vista (ponto de escuta, melhor dizendo) onde as vozes, suas dissonâncias, ruídos comunicacionais diversos e as camuflagens das intenções sejam adequadamente filtradas, relativizadas e iluminadas para uma interpretação bacana.
"Bacana", por exemplo, é muito legal! Cada um faz o que quer com bacana. Mas na vida cotidiana, bacana me parece ser ainda uma palavra sonora e démodé, que guarda coerência afetiva e positiva. Bacana, "palavra-ônibus" segundo meu dicionário aqui (tem mais da definição ali embaixo).
Mas as palavras são minhas também. E eu as adoro. E uso. Acho mesmo que as uso até demais....
Usei cerca de 36600 palavras para contar uma história. Acadêmica. Era uma dissertação de mestrado em sociologia. Mas, essencialmente, uma história: descritiva em conceitos, autores e suas inter-relações, em minhas perguntas ao mundo, dirigidas a algumas pessoas, e por fim, a forma e o processo pelo qual procurei as resposta para algumas perguntas que me interessavam. E ainda tinha algumas destas respostas, junto com precárias conclusões a respeito.
Fui arguido por uma banca, pois assim reza a tradição corrente de validação acadêmica deste tipo de trabalho. Aqui preciso reforçar ainda mais o meu gosto por usar as palavras. As palavras escritas com certeza, mas muito mais ainda as palavras faladas. E eu teria adorado contar aquela história mais e mais vezes. Porém ali não era bem o caso de contar a história, e sim apresentar aos que, naquele momento, detinham o poder de julgar se posso almejar uma condição específica. No caso, a condição de possuir um título de mestre em sociologia, cuja função simbólica primordial se representa exatamente na condição de pertencimento àquele campo com "pares", com todas as aspas que justificam esta nova e almejada condição, de "estar entre pares" com os membros da comunidade acadêmica das ciências sociais.
A história que contei naquele dia eu acho que tem muita coisa legal. O trabalho tem problemas acadêmicos, claro; e não poucos. Mas é uma história apresentada de forma bem costurada, elaborada dentro das normas exigidas, que não contém nem incoerências graves e nem erros crassos de julgamentos. (E se você quiser ler, vou ficar feliz de verdade em te enviar o arquivo em pdf, é só falar).
Agora chegamos no cerne do que eu quero compartilhar. Penso que, metaforicamente, existe uma "engenharia acadêmica" mas também existe uma engenharia prática. Existem indicações sobre exatamente qual o parafuso seria tecnicamente correto para determinada função prática. Porém existe a necessidade de se colocar, por exemplo, uma bicicleta para funcionar em segurança com o material e conhecimento que eu tenho à disposição, mesmo que reconheçamos que a solução desvia da melhor solução técnica acadêmica.
Seguirei numa metáfora equivalente para contar aqui minha visão daquela hora e meia de minha vida em transformação (de "mestrando postulante" em mestre, pois!).
Sobre o trabalho que apresentava eu não fui arguido nenhuma vez com questões iniciadas por: "explique melhor...", ou "o que você entende por..." e nem mesmo "porque estas relações aparecem aqui....". Todas as sentenças que me foram encaminhadas podem ser agrupadas no balaio raso do "se fosse feito de outro jeito ficaria melhor". Ou "menos pior", no caso dos comentários de presidente da banca*. Por sinal uma conclusão que eu estou perfeitamente aberto para concordar, desde que passando pelas aquelas questões às quais me referi antes, e que não se fizeram ouvir.
Minha sensação é de que a sociologia acadêmica não esteve presente na defesa da minha dissertação. Gostaria tanto de apresentar e debater, por exemplo, a evolução do conceito de comunidade, na vida e na sociologia. Ou as mudanças práticas e conceituais que a história moldou, tanto na comunidade como na sociedade e na sociologia. Ou sobre como o que estudei pode trazer qualquer contribuição para a humanidade, sob qualquer aspecto. Mas isso praticamente não houve.
Por outro lado, eu tenho algum prazer em perceber que a "sociologia prática" reinou ali, em sua grandeza de realidade e na crueza de comportamentos propícios à reflexão analítica. E talvez mais: nas contemporaneidades da própria sociologia (pós moderna, reflexiva, antropocênica), onde Bourdieu, pairando em minha criativa imaginação, junto ao meu querido professor Clóvis, se riam e se enraiveciam junto comigo por estes comportamentos apequenadores da existência humana (existência social, que se registre logo...)
Por um lado eu estava razoavelmente preparado. Nenhuma vaidade para defender, nenhum propósito de contradizer qualquer coisa que fosse. Apenas vontade de acabar logo com aquilo e, se possível, aprender um pouco mais sobre sociologia e sobre o ritual em si. Acredito ter sido bem sucedido nestes propósitos: fui aprovado, apesar das duríssimas críticas ao meu texto, e aqui estou, refletindo novamente sobre as observações daquele dia, com uma lente sociológica um pouquinho mais elaborada do que antes.
Para tentar uma conclusão desta história, e justificar o título do post (obrigado Guilherme, amigo feito neste trajeto, e que esteve presente de surpresa na defesa, junto com o meu único convidado e um dos padrinhos desta conquista, meu muito querido amigo Henrique), vou rememorar um pequeno trecho da experiência, onde o vilipêndio se materializa magistralmente (de facto). A legitimidade do uso da violência simbólica ali em seu esplendor factual, rico em simbolismo e farto em abrangência analítica.
O arguidor principal, senhor já conhecido, gentil com meu trabalho e comigo, referenciou sua crítica principalmente em um texto de sua própria autoria, e que versava sobre como a vida rural sempre fora romantizada (essa era também uma das conclusões em meu texto). Mas animou-se um pouco além da conta (e do tempo), e na pressa de fechar sua fala já nos acréscimos, me manda lá um "na página 15, na nota de rodapé tem um comentário do autor X que claramente você não leu. Leu?" Fiquei atônito. Mais até pela mudança de tom do que pelo conteúdo propriamente dito da pergunta, pois eu havia lido mesmo cuidadosamente todas as minhas citações, conforme manda a regra elementar.
Mas eu havia me boicotado. E dei azar. Não tinha levado meu texto impresso e, por razões técnicas da universidade, eu não podia mexer no meu computador, por conta de um mau contato severo no fio do projetor. Resolvi escapar pela tangente...
Isso tudo só para, mais tarde, revisando as críticas e as falas, perceber que ele se referia a um "apud" (texto de outro autor dentro da minha citação), e que por sua vez se tratava de um pequeno trecho em um prefácio ao livro de ainda outro autor. E que a conclusão citada era perfeitamente alinhada com a crítica principal do arguidor. Era verdadeiramente a resposta que ela pedia, sem exigir nem maiores preocupações de interpretação (veja você mesmo minha citação, ao final deste texto).
Daí que o vilipêndio enquanto sinónimo de repelir, expressa mesmo muito deste ritual de iniciação, onde o efeito final deve ser o de "admitir enquanto par" no campo acadêmico...
-----------------
1. verbete "Bacana" no Aurélio sec. XXI: "palavra-ônibus que exprime, encarecendo-as, inúmeras ideias apreciativas, e equivale a bom, excelente, belo, simpático, elegante, luxuoso, bem-educado, muito leal, inteligente, culto, etc, tudo no superlativo, aplicado a pessoas e/ou coisas; formidável, legal, bárbaro, infernal, tranchã, maneiro, massa, esperto.
2. A tal nota de rodapé, visando assegurar a compreensão do termo "comunidades de destino" conforme utilizado por Maffesoli:
Comunidades de destino: “Como já disse antes, existe um laço estreito entre o espaço e o quotidiano. E o espaço é, certamente, o repositório de uma socialidade que não se pode mais negligenciar. Isto é ressaltado em inúmeras pesquisas sobre a cidade. E é o que traduz a interrogação, ainda bem prudente, de H. Raymond no prefácio ao livro de Young e Willmott: “é preciso pensar que, em certos casos, morfologia urbana e modo de vida operário, chegam a formar um todo harmonioso?”. Certamente existe esta harmonia. Ela é o resultado do que propus chamar de “comunidade de destino”. […]. Naturalmente, e nunca insistiremos o suficiente sobre este ponto, que toda harmonia contém uma dose de conflito. A comunidade de destino é uma acomodação ao meio ambiente natural e social e, assim sendo, deve confrontar-se com a heterogeneidade sob suas diversas formas.” (Maffesoli, 1998, p. 174)
3. O texto que chamava a nota de rodapé:
O neotribalismo, caracterizado pela fluidez, pelos ajuntamentos pontuais e pela dispersão, se insere na construção dos movimentos urbanos e das comunidades de destino(*). Estes elementos parecem também estar presentes em outros movimentos, de forma similar ou transversal, e se manifestam em outras modalidades de relações sociais, menos fluidas ou pontuais. A vivência tribal, ao permitir o reconhecimento da individualidade, pode contrapor o atomismo e promover reconexões identitárias menos individualistas (Mocellim, 2011, p. 124).
4. Vilipêndio, no Aurélio sec. XXI: "Ter ou considerar como vil; desprezar; repelir."
* Em tempo: Não, o presidente da banca não falou "menos pior" textualmente. Mas todas as quatro vezes que mencionou meu trabalho se equivocou no título do texto. E, em sua fala, foi duríssimo na crítica de pelo menos duas passagens, onde ficava nítido que não havia lido o texto com o cuidado elementar para fundamentar estas mesmas críticas. Ai.
No comments:
Post a Comment
Por favor seja razoável em seus comentários: evite grosserias, rudezas e coisas assim.
Na dúvida, lembre-se que gentileza gera gentileza, e, parafraseando prof Cortella, também gente lesa gera gente lesa!