Monday, January 7, 2019

Estomago 3

O dinheiro é mesmo uma entidade foda! Em quase todos os sentidos, até no literal, desde que a Maria Madalena representou o resgate do que muito se chamou das mais antigas das profissões.

Trocar uma foda por comida é foda! E trocar comida por poder, não é? Pois tá tudo lá no Estomago, filme brasileiro sensacional de 2007, dirigido pelo Marcos Jorge.

O Giovani meio que adota o Raimundo Nonato - sem muita explicação dramatúrgica, mas dá a entender que Giovani reconhece um talento tão especial numa figura tão sem história, que resolve apostar nele para sua equipe de cozinheiros. E lá vai com ele para o mercado municipal de São Paulo (que em si mesmo já é uma foda!), apresentando os comerciantes, ensinando a negociar, a escolher materiais e mostrando que é foda naquelas coisas e naquela região - poder nas coisas pequenas, nas redes sociais das mesquinhezas, etc, etc.

No açougue o Giovani ensina sobre carne de vaca, dizendo que o coxão duro está pertinho da picanha, mas que tem muito maior valor, daí compara com a bunda da mulher e "seu valor". Bom de ver o Raimundo Nonato em sua simplicidade "desbundar" o Giovani pela desconstrução caipira dos termos que Giovani escolhe. Sinto que temos alguma chance ainda!

Este trecho do filme aprofunda uma faceta da relação que deixa muito espaço para o imaginário do espectador sobre como tanto o Giovani enxerga o RN, como vice versa. A dominação cultural e econômica que devem servir de referência não dão conta integralmente dos vazios que os afetos pedem para ocupar, e que, dada a intimidada mostrada, não pode ser transportada para outras áreas (nem tampouco interditadas) sem muita reflexão e construção psicológica do próprio espectador. Aqui existem riscos foda da identificação do espectador com um, com outro ou até com os dois, que podem deixar lacunas muito sérias para o desenrolar do filme, especialmente pelos afetos feridos. Sem deixar de registrar, entretanto, que estes efeitos são dramaturgicamente deslocados pelo álcool e seus efeitos.

Estomago 2

Uma questão em aberto desde sempre é a função da arte na sociedade. Ou para o ser humano. 
Não tenho competência e nem lastro pra entrar nesta discussão de forma estruturada, mas sigo o caminho que meu coração (e meu estorvo) me possibilita, num mundo onde esta mesma discussão se faz sobreposta: o que é arte? Qual é a condição qualificadora para falar sobre arte?

dito isto, me permito considerar algumas obras com sendo "obra de arte" de relevância, seja pela sutileza da abordagem, seja pela criatividade que reconheço na obra, ou até simplesmente pelo potencial emoção que cativa em mim. E o filme Estomago em questão é mesmo muito especial para mim. Já seria mesmo que ninguém tivesse vindo até mim para comentar sobre um determinado personagem. Mas pelo tal comentário, me devolveu a vontade de rever, analisar, re-sentir (sem ressentir, não é?) as principais cenas do filme... E em filmes, até por ser um aficionado em cinema, que gosto de rever as obras de que gosto (Como Água para Chocolate, Asas do Desejo, Toy Story...), comecei a aprofundar nas observações da dramaturgia, da fotografia, do roteiro, do que a gente viu e não viu (Sexto Sentido), das deixas que o personagem (ou o roteirista?) vai picotando pelo caminho pra gente construir uma pessoa em nossa imaginação, que ao fim é tão de carne e osso quanto nós mesmos. Ah, o Raimundo Nonato...

Mas antes teve o Picasso, que o Giovani (dono do segundo restaurante que o RN foi trabalhar, e que o ensinava cuidadosamente a arte da culinária), que montando um prato, menciona Picasso pelas criações artísticas, mas que ao final resume em valor financeiro a tal criação: pela montagem criativa de elementos extraordinariamente "baratos", transforma numa sobremesa muito cara. Picasso? Dali? Arte? ...

Arte pra mim é, por exemplo, o uso da música no próprio filme Estomago, onde a associação do tema com a comida é levado a um ponto que eu admiro muito, no paralelo do comer a comida (o tema já estava estabelecido), e que repentinamente é mantida no ato do homem comendo a mulher, que por sua vez estava comendo algo de que já demonstrara adorar.... E a montagem... a fotografia... a cena é mostrada pelo close da bunda da Iria, num arriscado (e super bem sucedido) enlace de comida e dominação, arriscado pela interpretação possível de pornografia barata, em tempo de patrulhamento e retrocesso social contemporâneo.

A riqueza e ao mesmo tempo singeleza dos personagens e do roteiro, que coloca na prostituta Íria o principal elo de ligação entre os dois núcleos do filme: o lado de dentro e o lado de fora da prisão onde RN cumpre sua pena. E ainda num nível mais sutil, a ligação dramática dos amores do RN e suas carências e das razões de sua existência nos dois planos.

Gratidão pelo filme existir. Pelo amigo que me levou a assistir com este cuidado e atenção de reflexão. Ao RN que, ao deixar extravasar sua ira e revolta e, consequentemente, pagar por isso, me ajuda a sublimar as tantas vezes que o mundo de alguma forma me empurrou para uma atitude impensada, um gesto além da moral, uma atitude raivosa tantas vezes aflorada, mas que de alguma forma não veio á lume - ou não trouxe a consequência desastrosa como para o RN....