Sunday, May 31, 2020

Um peixe em minha vida...

Experimentando o tal do "isolamento social" que se difundiu com o corona virus, recebo de um amigo das antigas um video relatando outro evento de grandes proporções que me impactou profundamente.
O tal video (link abaixo) pega o relato de alguém que esteve a bordo durante o primeiro acidente de grande porte ocorrido na plataforma de Enchova, PCE-1, em agosto de 1984. Entrei na Petrobras exatamente neste período (eu estava fazendo curso de formação em Macaé quando ocorreu este acidente), e posteriormente conheci muitos do que passaram por este evento lá a bordo.
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Sobre o video, preciso destacar alguma inconsistência factual (a principal delas deve-se ao fato de somente ter morrido gente no "episódio" da queda da baleeira, ou seja, não relacionado diretamente com o acidente, mas um "sub acidente" dentro do evento principal). Outras inconsistências relevantes derivam do uso de imagens inadequadas, de outras unidades da Petrobras, e coisas do tipo, que podem levar a crer em desdobramentos que não correspondem aos fatos, mas que dentro do contexto apresentado não diminuiu em nada a emoção do relato, e especialmente as lembranças dos aprendizados (individuais e coletivos), e a construção histórica de nossas vidas, da Petrobras enquanto instituição, e sem medo de errar, da indústria do petróleo como um todo.
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A PCE-1 foi meu principal local de trabalho por uns 5 anos, sendo que iniciei aos 21 anos de idade... Penso que a importância daquelas experiências vividas lá na minha formação profissional (inegável) e pessoal (que entendo como mais profunda ainda) foram co-fundadoras essenciais do ser que sou hoje. A vida nas plataformas naquela época, ainda antes do final da ditadura militar no Brasil e com  tecnologia de comunicações incipientes, tinha um distanciamento do mundo e um grau aventuresco que já funcionava como uma "cola social" daqueles grupos e das pessoas que ali se encontravam.
Para dar uma ideia aos mais jovens, não havia nem um telefone convencional para ligar para números domésticos, apenas para dentro da própria Petrobras; daí que para manter contatos pessoais falávamos uma ou duas vezes por semana via rádio, com direito a frases memoráveis como "te amo, meu amor, tenho muitas saudades.... câmbio!" 
Mas longe de ser por aí os fatores mais impactantes, ter vivido uma sociedade com tais características, que gostaria de destacar:
  • onde não circulava dinheiro, (exceção aos que fumavam, que compravam seus cigarros no "quiosque" que abria sob demanda, e quase mais nada que não fosse adquirido apenas uma vez durante uma jornada de 14 dias, tipo sandália havaiana, cortador de unha, etc)
  • cama, banho e comida estavam plenamente asseguradas
  • todos lá sem exceção tinham emprego formal e salário, 
  • todos se sentiam bem remunerados (assumo e uso esta generalização como ampla e quase incontestável, mas estou aberto à críticas se alguém percebe diferente)
  • a segurança a bordo era percebida ao mesmo tempo como inerente à atividade e transcendente à sociedade, especialmente neste período entre grandes acidentes da PCE-1 (outro evento de grandes proporções ocorreu em 1988)
  • todos tinham acesso á lazer, banho quente, e roupa lavada
paro por aqui por lembrar que as diferenças individuais vão se acentuando ao descer nesta lista, pois se ninguém mesmo usava dinheiro, já o lazer, por exemplo, era claramente "classista", reproduzindo assim a própria estrutura social da época, que, de forma simplificada, era composta de: um eng chefe, dois ou tres eng sub chefes, sete ou oito técnicos capatazes, uns setenta funcionários de remuneração variável entre técnicos e administrativos, outros setenta subalternos subcontratados cujo treinamento recebido era questionável e se sabiam subalternos (copeiros, cozinheiros, montadores de andaimes, pessoal da movimentação de carga, pintura e limpeza, etc). 

Nesta micro sociedade amadureci sob grandes responsabilidades, criando amizades atemporais, convivendo com diversos tipos de pessoas que nunca mais haveria de conviver sob circunstâncias tão próximas, e sem dúvidas, tão propícias a uma certa fraternidade e compaixão.
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Daí revendo meus momentos ao assistir o relato, lembro de muita coisa que jaz nos fundamentos do que ora se apresenta novamente no enfrentamento coletivo do corona, atualmente no nível planetário (ou quase).
Vou destacar, pra tentar aprofundar adiante:
  1. a estrutura física disponível para emergências, sua adequação e o preparo do grupo para seu uso
  2. a estrutura da comunicação formal antes e depois dos acidentes
  3. a comunicação informal e seu impacto naquela sociedade e situação
  4. perfil sociográfico, exclusão relativa e "exo-exclusão"
  5. os vínculos afetivos que se criam em isolamento
  6. tabus e preconceitos, ontem e hoje
  7. traumas coletivos, medo e aprendizado








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1) Video: Escapando de uma plataforma de petróleo: https://youtu.be/N5NFSfw53cE (21/03/20202)
2) outra narrativa, mais técnica e mais isenta: http://inspecaoequipto.blogspot.com/2013/05/caso-016-plataforma-de-enchova-blow.html?m=1 (obs: contém link para reportagem da globo, que merece crítica particular não realizada aqui).