Sunday, December 3, 2023

Secos e molhados na minha vida (para Gabriel)



ahh, a vida
ahh, a arte
ah, a música
ah, as memórias
ah, a história....

ahh, a vida...

a gente chega, vê um monte de coisas (ou não vê quase nada), e nem sabe que o que está vendo vai virando memória, a nossa e a dos outros, os próximos e os nem tanto... E daí, de repente - ou não - as histórias (e lembranças) já vão se entrelaçando, furtivamente, semeando e regando o futuro, os possíveis, os viáveis, os futuros, o nosso, o dos outros, o mundo... 


ahh, a arte

talvez a arte seja a cola mais social dessa construção do futuro, dessa ponte entre o ontem e o amanhã que, misteriosamente, constrói os laços e nós que resultam na trama do hoje... E o tal do "fazendo arte", do qual eu muito fui acusado quando guri, veja você, na diferenciação que minha mãe, afetuosa e generosa, muito me mostrou entre o artista e o arteiro, o cartista e o carteiro, o político e o colítico, o objeto e o abjeto... 


ah, a música

que força de transformação, que gostoso que é a tua existência, que lindeza cada instrumento, cada nota, notação e timbre, que profundidade em nossa vida, que presença em cada canto do que podemos chamar de cultura..... e a voz! A voz... a minha, a tua, a de todos e da cada um. E a do Ney, não é?


ah, as memórias

"voz divina do ney" (Nelson Mota), "Dias Gomes era considerado um subversivo pelos militares..." (Ney Matogrosso) "eu confesso pra você, como sempre confessei, que achei (o nome "secos e molhados") não só um horror, como muito estranho". "O próprio Ney reclamou comigo, me dizendo: -ora, o Gerson (Conrad) parece que não sabe direito se fica ou se vai, se vai ou se fica..." João Ricardo. "Até então nós já tinhamos mandado uma fitinha nossa para todas as gravadoras, que sequer ouviram" (Ney). Eu tinha dez anos imitando o Ney rebolante, feliz e envergonhado ao mesmo tempo, cantando num cabo de vassoura a Rosa de Hisoshima, sem saber direito sobre o que se tratava... e...

..."e o Vinicius me pegou no braço e me falou assim, menino - com os olhos cheios de lágrimas - se você não tivesse resgatado esse poema dessa antologia, eu morreria frustrado, porque eu estou esperando por esse momento há muitos anos..."


ah, a história....

o quanto isso transformou o momento, a vida deles, a nossa. O impacto, por exemplo, da imagem do grupo, mas também de tudo o que aconteceu naquilo, por aquilo, com aquilo...

Possíveis interpretações sobre toda história e suas fabulações, vejo a liderança talvez meio rude do João Ricardo, seu perfil meio visionário e bastante obtuso em sua própria obstinação

E hoje, de minha parte, vendo o quanto de Portugal tem dentro desse disco, vendo o quanto o momento faz parte da minha própria história, revejo a história, as histórias, a estória, e mesmo a escória que sempre fica de cada história, na recriação mesmo das todas as histórias, não é...?

E na história fica, materializado, nessa obra, que sugiro seja ouvida com carinho e emoção, em cada faixa, cama acorde... Acorde:

Lado 1
N.ºTítuloCompositor(es)Duração
1."Sangue Latino"  João Ricardo/Paulinho Mendonça2:07
2."O Vira"  João Ricardo/Luhli2:12
3."O Patrão Nosso de Cada Dia"  João Ricardo3:19
4."Amor"  João Ricardo/João Apolinário2:14
5."Primavera nos Dentes"  João Ricardo/João Apolinário4:50
Lado 2
N.ºTítuloCompositor(es)Duração
6."Assim Assado"  João Ricardo2:58
7."Mulher Barriguda"  João Ricardo/Solano Trindade2:35
8."El Rey"  Gérson Conrad/João Ricardo0:58
9."Rosa de Hiroshima"  Gérson Conrad/Vinicius de Moraes2:00
10."Prece Cósmica"  João Ricardo/Cassiano Ricardo1:57
11."Rondó do Capitão"  João Ricardo/Manuel Bandeira1:01
12."As Andorinhas"  João Ricardo/Cassiano Ricardo0:58
13."Fala"  


"e, daí, a coisa mais grave (pra mostrar na TV): e esse olhar...?" (Ney)



Referências:
https://www.youtube.com/watch?v=S_F-o0nH20M&t=1s
https://www.youtube.com/watch?v=LJv_S9BxWr4 
https://youtu.be/LJv_S9BxWr4?si=3ZdTcl2Y5Lu7OwC8
https://pt.wikipedia.org/wiki/Secos_%26_Molhados_(%C3%A1lbum_de_1973)

e ainda a gratidão aos criadores disso tudo, com menção a mais ao Zé Rodrix

 


Tuesday, July 18, 2023

correria

antigamente usava-se mais frequentemente a palavra correria. De vez em quando era uma correria danada, e em seus usos mais comuns tinha duas acepções: para denotar pressa em aprontar algo ou para se referir a uma fuga. Parece que atualmente, lá como cá, tanto uma acepção como outra se inseriram de tal forma no cotidiano que a palavra largou esses significados pelo caminho, como que despojos de uma fuga com pressa. (aliás: toda fuga acontece com pressa?)

Lembro da primeira vez que escutei o som de um tiro na rua, lá pela década de 1980 ou 90, quando a violência urbana começou a se espalhar em definitivo por todas as áreas da cidade do Rio de Janeiro. Naquele tempo, pasmem, não era comum as pessoas falarem sobre armas e o povo brasileiro era tido como pacífico, apesar das intensas violências do submundo da ditadura torturante que alguns, hoje, paradoxalmente, admiram e pedem o retorno. 

Depois o som dos tiros começou a ficar cada vez mais comum, até meio que se incorporar aos sons usuais da cidade. Deve ter contribuído para essa minha sensação o fato de eu ter me mudado para perto da famosa favela do morro de D. Marta, no período da disputa entre facções (Cabeludo x Ananias, eu acho...), numa incrível geografia em que essa favela se posiciona (e ainda é assim) colada ao terreno onde estava (e ainda está) a residência do prefeito daquela cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. A trilha sonora, perfeita para esse tempo é do Gilberto Gil: "Nos barracos da cidade", onde "ninguém mais tem ilusão no poder da autoridade, que se pode não faz questão, e se faz questão não consegue controlar o tubarão".

Lembro também da primeira vez que vi de onde vinham os disparos: circulando de carro pelas ruas do bairro de Santa Teresa um policial disparava, não sei para onde, com uma expressão relativamente tranquila, eu diria como quem caça passarinho. "Acertei? Nem sei..." Entre esses eventos houve também alguns "espetáculos" das balas traçantes, fenómeno tecno-midiático-militar-criminoso que divertia o horror social de uma quantidade insana de tiros, pela beleza coletiva das linhas vermelhas dirigidas aos céus. Dava até gosto de ver....

Aqui na Europa parece que eles preferem os tiros mais concentrados nos tempos das guerras que fazem regularmente entre os povos. Daí que agora é na Ukrania, ainda pouco era no Kossovo, Tchechênia... um pouco antes por toda a Europa na segunda guerra mundial (esse mundial já denota um eurocentrismo fantástico, né não?)

....

A correria segue, parece que cada vez mais incorporada ao processo do cotidiano. Daí sobra a deixa pra poesia de Drummond (1938):

"Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva. 
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição 
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

O poema completo, na voz de Caetano Veloso (e seus comentários):
https://www.youtube.com/watch?v=AqNjbqQwOzE

também, e recomendo, alguma coisa de Vinicius, aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=Ig0wlf4jJ9Q

... e isso tudo, sem correria....

Wednesday, May 10, 2023

(novas) relações

 que grande mistério são as relações humanas, não? ou não...

Particularmente eu gosto dos mistérios. E também, e muito, das relações humanas. Nem todas, é claro, apesar de acreditar que conheci algumas poucas pessoas que genuinamente gostavam de todas as suas relações humanas pessoais.

As relações humanas que pretendo tratar aqui são mesmo aquelas que tentamos que nos sejam as mais próximas, escolhidas por nós, mais frequentes no que se refere ao contato e, consequentemente, as mais profundas. Se enquadram no namoro, no trisal, nos contemporâneos de ficante regular, enfim, no que convencionalmente chamamos de casal. Usarei mesmo o termo casal, apesar da certa implicância que tenho ele, muito provavelmente pela implicância profunda que tenho com o "casamento" enquanto modelo (tipo ideal) de relação entre duas pessoas na sociedade em que vivemos.

Certamente há muito estudo sobre o que vou dizer. Profissionais e escritores se dedicaram e se dedicam há muito sobre o tema. Confesso que não tenho nenhum lastro para referenciar, mas entendo que há temas e áreas do conhecimento que todos os indivíduos devem ocupar seu lugar de fala até o limiar de suas percepções (eg, saúde), de forma que, por estar dentro do campo das relações de casal já há bastante tempo, vou emitir um ou dois pitacos que tomara sejam úteis para você que lê, assim como são para mim, como forma de organizar melhor meus pensamentos e minhas atitudes nas relações humanas.

Deve haver algum estudo sobre o ciclo das relações de casal. Se houver, acredito que haja um padrão mais ou menos regular. Minhas observações pessoais a respeito consideram um universo muito pequenino em consideração. Mesmo assim, acredito que dá pra ter uma noção geral sobre a regularidade que costuma acontecer na grande maioria dos ciclos, especialmente nas fases iniciais, ou seja, 

  1. travar conhecimento (como vocês se conheceram?)
  2. se interessar (aquela pessoa é legal, gostei!)
  3. demonstrar interesse (toda a gama dos jogos de sedução, de parte a parte)
  4. propor algum tipo de interação (ainda na sedução, e atualmente pode ser muito variado esse cardápio)
  5. primeiros momentos (aqui se inicia a complexidade e variabilidade, que não me proponho a aprofundar; digamos que esses seriam usualmente os cinco ou dez primeiros encontros, o que incluiria a emissão de frases que indicam simbolicamente o que cada tem em mente no que se refere àquela relação)
  6. "sequencia da franquia" (até onde vai essa relação? Será duradoura? Será prazeirosa para ambos? Ou pelo menos minimamente honesta?)
Tudo isso estruturado, o que me fascina nesse momento são os movimentos que irão fazer o que chamei de "sequencia da franquia" se estabelecerem socialmente. Esclarecendo: o casal é visto por seus pares na sociedade, como sendo representante de algum "tipo ideal" de relação (eg, namoro, casamento, noivado, caso, pegação, amante, etc). Não está muito claro para mim os mecanismos que acontecem dentro das relações e que são usados como símbolos e representam socialmente esses laços. 

Porém nesses momentos ocorre a necessidade de rearranjar os compromissos internos do casal, de forma a acomodar um leque enorme de variáveis em uma visão, digamos, de longo prazo. Para evitar algum mal entendido, e para buscar que você siga comigo, vou tirar do nosso horizonte de análise tudo aquilo que chamo, pelos conceitos do Zygmunt Bauman, dos amores líquidos e sua inegável tendência desses tempos. Me refiro às relações onde cada um tem seu próprio espaço e não pretende oferecer à nenhuma outra pessoa individualmente nenhuma forma de relação estável; "a gente fica junto quando quer, se ama, mas deixa que cada um escolha seu caminho; se o outro viajar, 'segue a vida', 'a fila andou'", etc. 

Tendo removido esse grupo, agora sobram os casais e os que estão tentando formalmente alguma alternativa a isso, certo? São esses que vivem os momentos de sedimentação das novas condições entre o ontem e o amanhã, mas que tem numa certa fantasia de parte a parte um elemento que é fundamental para a coesão (e coerência) da relação,

Como seguir encantado depois que a gente descobre os truques que todos nós utilizamos repetidamente? Como abrir mão dos nossos truques (e traques!) em prol de uma relação mais próxima e saudável? E principalmente: como realinhar as expectativas das conquistas individuais com as conquistas coletivas, com a necessária regularidade, acolhimento e motivação que podem trazer coesão e coerência para um casal?


texto em construção! abaixo as referências que gostaria ainda de colocar

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Cristóvão Bastos:

Nilton Bonder

Monday, May 8, 2023

O risco fundamental: isso você vai ter que escolher!

Má informada, bem informada
Má informação, boa informação

 Observo no mundo que tem gente que não gosta da escolher. Ou que apenas declara que não gosta de escolher, e daí segue como se esse comportamento não fosse já uma forma de escolha. Mas o ponto que trago agora é outro.

Nesses tempos de polarização parece ter havido muita pressão para que as pessoas escolhessem um lado do espectro político. Essa conjuntura se mostrou, de certa forma, catastrófica|: praticamente resumiu o debate ao tempero do ódio de lado a lado, reduzindo dramaticamente os hábitos de argumentação, enviesando tudo, o caldeirão das redes sociais, suas bolhas e fakenews em muitos sabores. Tanto que tornou não só o termo fakenews muito popular, mas como transformou mesmo a situação quase em um problema global. O que é fakenews? Como poderemos controlar socialmente esse fenômeno? Quem produz e dissemina fakenews precisa ser contido? Precisa ser punido?

Minha observação do mundo, empírica e limitada por definição, me permitiu observar que muitas pessoas se alinharam pra um lado ou outro do espectro político (p.ex. nas últimas eleições brasileiras), mantendo um discurso que poderia ser considerado quase como "não gosto de escolher, mas não tenho escolha". Posso estar sendo muito reducionista, mas acredito sinceramente que há um enorme contingente que poderia ser enquadrado nessa "atitude". 

Se isso refletir mesmo uma posição social, reforça a condição "não gosto de escolher" da abertura desse texto. Assim produz um certo "afrouxamento" das barreiras internas das bolhas, reduz ainda mais as necessidades de argumentação e elimina muitas dos esforços que estão relacionados às escolhas que, naquele caso, representam o conduzir do futuro, a administração da coisa pública, etc, etc.

Utilizando uma imagem que também se popularizou nesse passado recente, a conduta que aparecia como "gado" representa muito fortemente essa condição. Ver gente rezando na parede de quartel do exercito, pedindo a volta da ditadura ou orando para pneu de caminhão transcende bastante uma mera visão do simbólico tradicional. Há mais a ser desdobrado, analisado, compreendido. Porém, desse mesmo grupo partiam críticas aos meios de comunicação (em geral aos hegemônicos), com o -raso- argumento de que estariam igualmente conduzindo gado, sendo esses os opositores do campo político ao qual se achavam alinhados.

De minha parte eu vejo que existe uma atitude clara de redução de riscos de cada indivíduo, de cada grupo pequeno, em sua atuação política. Em brevíssimo resumo: sendo submetido a tantas informações e dados, de tantas fontes e origens diferentes, cada pessoa se aproxima ao seu limite de "digestão" dos fatos, se tornando presa razoavelmente fácil de notícias manipuladas, viéses diversos, e assemelhados. E assim nos expomos ao risco social de estar desinformado, ou desatualizado, ou pior, mau informado (em contraste com o mal informado). E pelos reforços de viés de nossa bolha, melhor acreditar nos que nos estão próximos.

Só que as conexões sociais são muitas, e a presença maciça das redes sociais agora desenha a bolha com precisão maquiavélica (e diabólica!). Se essa condição aprofunda a divisão pela polarização política, nos permite ver que houve um processo de escolha, deliberado ou não, e que pode ser muito interessante se colocado na lupa das ciências sociais: foi preciso escolher em quem acreditar.

Muito pontos convergem aqui: desde as histórias de faz de conta que contamos às crianças, os tabus e mitologias que nos antecederam e os que permanecem, Adão e Eva inclusive, religiões, superstições e ignorâncias de toda sorte, todo o método científico e sua história... 

Há aqui muito pano pra manga. Mas em algum ponto da vida de cada um de nós tivemos que escolher em quem acreditar. E dessa escolha não há como escapar.

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ah, tá: já tem mais alguém falando sobre isso... 
Pelo menos aqui, ó:
https://www.youtube.com/watch?v=417DHVfxvao
(canal epifania experiência, título "Você (não) pode acreditar no que quiser"

vai lá ver e depois deixa teu comentário aqui. ou não, né?



Friday, May 5, 2023

Sonhos: a decadência do modo capitalista de produção

O título pode enganar um pouco, então vou esclarecer logo esse ponto.

O modo capitalista de produção vem, há bastante tempo, sendo estudado em profundidade, e apresenta contradições gigantescas já bem conhecidas. Seu principal sintoma é a permanência de fome, miséria e/ou falta da infra estrutura elementar para a vida digna para a maior parte da população do mundo, enquanto uma pequenina parcela da humanidade pode ser imensamente rica materialmente. 
Eu partilho da visão de que a decadência do modo capitalista de produção é uma questão de tempo, não somente porque é ruim e ineficiente sob a ótica social, mas principalmente porque todo modo de produção se transforma com o desenrolar da história, e por fim acaba "passando", seja por caducar, seja por meio de reforma ou de revolução. Mas não é disso que eu vou seguir tratando aqui. É de sonhos!

de https://www.sbs.com.au/food/recipes/portuguese-doughnuts-bola-de-berlim


O que me chamou a atenção para a ideia que vou tratar nesse texto foi o consumo, em um café daqui de Portugal, de um bolinho que no Brasil se chama sonho (aqui em Portugal chama-se bola de Berlin). Gosto mais do nome"sonho". Vou seguir chamando assim o tal bolinho, porque eu gostava bastante dos sonhos de minha infância, na periferia bem distante da cidade do Rio de Janeiro. 
No caso era uma periferia diferente do que é hoje: Jacarepaguá era bastante rural, local de moradia de gente simples e do surgimento do que eu chamo de e com uma "proto classe média". Hoje verifica-se um processo de favelização por um lado, e ao mesmo tempo de "condominiação" e muros altos, todos dentro do contexto da "milicianização" de uns e de outros, resultado, entre outras coisas, da desconexão de órgãos essenciais do estado para assegurar cidadania com a articulação popular pela autodeterminação. 
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Então fugindo da armadilha que propus no título, o sonho que comi hoje me lembrou o sonho da minha infância... 
A pastelaria portuguesa, marcada pela sua tradição e seus ingredientes típicos, coloca dentro da massa de pão frito um creme cuja receita seria derivada de gema de ovo, como uma boa parte da principal linha doceira de Portugal. O creme que estava na bola de Berlin que comi hoje me lembrou o creme que comia na década de 1970 no Rio de Janeiro: bem amarelo, doce sem "excesso demasiado", e sem dúvida contendo ainda alguns vestígios do doce de ovos. Mas já não é o que provei há algum tempo.

Ainda havia doce de ovos no sonho da minha infância. 
Em minha última ida ao Brasil, uns anos atrás, tentei um sonho de padaria para ver como estaria, até em comparação com o que havia provado por aqui. Na aparência seguia bem parecido, e nem preciso postar a foto aqui. Minha análise sugere que a pastelaria brasileira (pelo menos a carioca, com certeza) se especializou em fabricar doces e assemelhados em esmeradas apresentações, entretanto desconectando definitivamente a aparência (bonita) do sabor (a dita experiência gustativa do consumidor). Não achei mais nenhum vestígio de doce de ovos nos sonhos cariocas. Agora o que vem como recheio é um creme de cor amarelo claro, textura gosmenta, sem gosto definido (ruim mesmo), muito doce e sem personalidade, caracterizando o que descrevi aqui como uma forte decadência.

O que percebo na bola de Berlin de Portugal que comi hoje é a similar decadência do recheio, que atualmente aqui se assemelha em qualidade ao da minha lembrança de infância. Os indicativos da decadência estão muito mais visíveis no Brasil de hoje do que em Portugal, por uma série de fatores que não cabe detalhar aqui hoje. Porém o que ficou muito claro para mim é a semelhança direta entre os processos de decadência daqui de Portugal e os que se passam no Brasil. E que essa decadência específica, sem dúvidas, se deve às mudanças nos processos de modernização do fabrico: novos métodos, atualização da receita, etc. 
O fator principal que ordena tais alterações certamente mira o aumento da lucratividade na operação da padaria. 

As metas "universalizáveis" disso, dentro desse modo de produção que busca sempre capitalizar, tem dois objetivos principais: 
  • baratear os custos de produção: insumos mais baratos, produção mais acelerada, menor consumo de energia, etc
  • aumentar o volume de vendas: através do aumento da base de clientes, da "fidelização" dos clientes (que pode ser, por exemplo, com mais açúcar na receita, ou com o custo de venda por unidade um pouco menor), vendas casadas, novos "modelos" de produtos, etc
O resultado final buscado (aqui, ali, ou acolá) é sempre o mesmo: aumentar a lucratividade. E isso nem é visto como coisa feia; em muitos círculos até pelo contrário. Mas leva diretamente ao ponto central que vi e quero compartilhar com você:

Uma das consequências inevitáveis e inescapáveis desse processo é a regular e sempre presente decadência de todo e qualquer produto que seja levado ao mercado para consumo de massa. Insisto: esse modo de produção leva sempre à decadência na qualidade de TODO E QUALQUER produto levado ao mercado para consumo de massa. 


Sobram alguns pontos que já adianto, e devem servir para desenvolvimentos posteriores:
1. o que porventura não entra em decadência são os produtos produzidos para as classes superiores, cujo custo de venda é inacessível para a enorme maioria da população.
2. o decaimento na qualidade dos produtos segue regras gerais de substituição por novos tipos, novos modelos, novos formatos, etc, etc, quase sempre a preço mais baixo por unidade, mas em qualidade agora assumidamente inferior (veja, por exemplo, a reportagem da BBC Brasil intitulada "Como leite deixou de ser leite no Brasil", link abaixo).

Para concluir, quero salientar alguns aspectos disso:

  • A velocidade da decadência dos produtos precisa se ajustar aos parâmetros econômicos da sociedade onde acontece: não tão rápido que afugente os consumidores, não tão lento que permita a substituição dos fornecedores por alguma organização social local. É mais fácil controlar a velocidade de produtos "novos" do que de produtos "tradicionais", por razões que me parecem óbvias.

  • A decadência que me refiro participa do processo de subsídio da produção de produtos de consumo para as classes altas (veja por exemplo como o preço de venda dos carros populares é usado para "baratear" os carros das classes mais elevadas), e até mesmo o desenvolvimento tecnológico geral da humanidade (representada parcialmente pelos investimentos privados, mas principalmente porque a tecnologia de base é majoritariamente financiada pelos governos de todo o mundo)

Claro que não desconheço outros fatores, como oferta e procura, propaganda e marketing, eficiência e efetividade, financiamento e alavancagem, etc. Mas essa ponta que busco aqui tornar visível e evidente parece oferecer uma conexão importante para os que não estão antenados com o processo todo, mas que buscam entender.

Como resultado de longo prazo, essa decadência se torna observável por qualquer um de nós, afinal os produtos que consumimos sempre pioram de qualidade e são regularmente substituídos (ou os sonhos que são vendidos aí perto de tua casa melhoraram com o tempo?). E isso acaba por nos dirigir ao ponto central: a decadência inevitável dos produtos do mercado dentro modo de produção capitalista é uma conexão visível do processo mais abrangente onde o rico fica sempre mais rico. E isso só pode ser alcançado através da socialização da pobreza. Ou da piora dos produtos.

A você, eu desejo bons sonhos!




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Atualização:
segundo o site https://ncultura.pt/bolas-de-berlim-a-portuguesa-historia-e-receita/:
"História

Sim, há algo de alemão nestas bolas. A verdade é que a base desta receita foi trazida por algumas famílias judias alemãs que, por altura da 2ª Guerra Mundial, encontraram refúgio em Portugal. Por terras germânicas são mais conhecidas por “Berlinesa” (Berliner/Berliner Pfannkuchen/Berliner Ballen).

Mas não se pense que este bolo se mantém fiel à receita original. O recheio de um doce à base de frutos vermelhos foi substituído por um dos doces mais comuns e apreciados em Portugal – o doce de ovos."

Link da reportagem da BBC:
https://www.youtube.com/watch?v=tCbJdxHDeMA&pp=ygUQYmJjIGJyYXNpbCBsZWl0ZQ%3D%3D

Tuesday, January 3, 2023

Algum caminho para a "sustentabilidade"?

Breve resumo de uma nova experiência acadêmica voltada para uma (pretensa) construção de um caminho sustentável (social, ambiental e economicamente, como está nos textos!)

1. A professora que diz que o pequeno produtor rural não representa nada significativo em Portugal, e o que importa são as grandes produções. Além disso, peca feio em não escutar as nossas perguntas até o final.

2. Outro professor diz, em seminário velho e desatualizado, que é possível que os gases de efeito estufa ajudem a esfriar o planeta (você viu isso?)

3. ainda outro professor (que também não escuta as perguntas até o final) comenta o lado pernicioso dos subsídios, sem ao menos se oferecer para detalhar as definições estratégicas da UE com relação aos subsídios para a transição para uma economia sustentável (ou bioeconomia circular, ou seja lá o que iremos tentar)

4. todos os professores (acho que todos disseram isso em algum momento, mas se exagero aqui peço desculpas) dizem que um aspecto forte do problema a enfrentar se refere ao aumento populacional. Ora, a Europa está há décadas enfrentando o problema inverso, de decrescimento da população, Portugal inclusive. Ou os professores não entendem o problema direito, ou não se prestam a nos ajudar a entender de forma estruturada onde é que isso se relaciona com o tema da sustentabilidade. Nem sei o que é pior entre essas duas hipóteses...

Nesse quadro eu preciso me manifestar aqui de forma um pouco mais estruturada. 

Acho que o curso que nós escolhemos é mesmo péssimo... Isso não me parece ser privilégio específico desse curso, que infelizmente constato -de forma empírica- ser representativo da qualidade média dos cursos desse tipo em Portugal. Mas isso não vai ser suficiente para que eu desista de estudar o assunto. Afinal, cursos ruins e professores péssimos já tive muitos, e isso não me impediu de seguir meus aprendizados. Porém precisamos de algo para não desanimar, pois de onde se espera apoio (pedagógico, emocional, etc), daí não virá nada melhor do que veio até agora. Ou nós nos organizamos entre nós para enfrentar essa realidade, ou isso seguirá sendo um tipo de “luta de todos contra todos”, e a gente já está cansado de saber onde vai dar esse caminho, não é?

o curso é mal estruturado e pior conduzido. Talvez tivesse sido melhor se fosse organizado em três vertentes com foco em: 

a) agricultores e gente que quer desenvolver o que aprende, aplicando na prática o mais rápido possível, como o caso do Bruno, que por sinal desistiu recentemente; 

b) quem quer lidar com regulações, organização do estado ou outras, para atuar na interface campo/sociedade, entendendo o problema de forma mais ampla, mas atuando não necessariamente no campo em seu dia a dia; e 

c) quem quer seguir o caminho acadêmico, aprofundando os estudos em qualquer das áreas afins e produzindo novos conhecimentos científicos e técnicos que possam auxiliar no caminho de uma sociedade mais sustentável.

Mas isso é só uma opinião minha, que compartilho aqui para tentar ajudar a quem quer decidir se fica ou vai embora (e pena que alguns de nós já tenham ido embora, e eu ainda não tinha estruturado esses pensamentos).

a falta de aulas “tradicionais”, que para mim foi um atrativo, está se revelando um fiasco dentro desse quadro, pois exige que estudemos sozinhos quase sem apoio pedagógico decente, e por fim sejamos cobrados de ter compreendido onde é que sustentabilidade se conecta com todas as disciplinas de fronteira (marketing, administração & gestão, agronomia, ecologia, sociologia, ciências políticas, entre outras)

parece estar absolutamente claro que, dentro do tripé da sustentabilidade apresentado, o fundamento económico está acima (e muito acima) dos demais pilares ambiental e social. Aliás, como sempre esteve em nossa sociedade, desde a revolução industrial até os nossos dias. E exatamente essa condição é que já se mostrou insustentável ambientalmente e socialmente, ainda que todos os dias sejamos expostos a argumentos que querem nos convencer de que economicamente estamos “bem”, com indicadores de GDP, produtividade global, etc. Aqui tem um nó que precisaremos desenvolver mais frontalmente, mas não vai caber aqui hoje.

E nós, o que temos a ver com isso? Afinal, escolhi (escolhemos) um curso pensando que poderíamos contribuir de alguma forma com um caminho para o mundo que fosse mais sustentável, de acordo? O que fazer agora?

Buscando seguir de forma estruturada, penso que temos as seguintes opções, individuais e/ou coletivas:
a) desistir do curso, e assim economizar o que ainda faltaria a pagar por esse curso, parar de encher o saco com isso, etc. Acho que ainda é uma boa hora de fazer isso, pois os custos totais que já tivemos até aqui (que na gestão se chama “custo afundado”) só vai crescer, caso ainda desistamos mais tarde. O timing perfeito para desistir depois de ver como seria era mesmo dezembro, e por isso já adianto que não é essa a minha escolha (e também por isso respeito a escolha dos que partiram).
b) seguir o curso capengando em conjunto, cada um enfrentando suas dificuldades e estudando sozinho, fazendo seus trabalhos e “segue a vida”. Acaba sendo o caminho "natural" dos que irão restar, sendo praticamente o caminho “default” de nossa sociedade e, arrisco dizer, é o que se espera de nós nesse curso.
c) tentamos nos organizar para nos apoiar coletivamente no caminho a frente, construindo uma rede de aprendizado entre nós, que sirva para nos apoiar e motivar como grupo, e que nos ofereça condição de lutar por alguma coisa diferente dentro desse curso.

Vou concluir refraseando o que falei ontem na aula: na minha forma de ver as coisas nós precisamos encontrar novas formas de fazer o mundo, para que seja sustentável. Simplesmente aprender como vem sendo feito até aqui (ou seja, partindo da premissa que “se fizermos melhor, iremos conseguir a sustentabilidade ambiental”) está evidente que não será suficiente. Temos que fazer outras coisas, de forma diferente. Ou ao menos tentar isso. “Mais do mesmo” só vai gerar também “mais do mesmo”, o que no caso significa poluição desenfreada e aquecimento global, desigualdade social e desequilíbrio das relações, concentração de renda e aumento da pobreza, etc. 

E quem é que está tentando fazer as coisas de forma diferente? Acho que é aqui que devemos concentrar nossas atenções coletivamente.  

Acredito que quem está tentando fazer as coisas de forma diferente são, para começar, pessoas que escolheram fazer um curso como o nosso. Por isso estou investindo nesse texto enorme para, mais uma vez, convidar a quem quiser enfrentar isso de forma coletiva para nos organizarmos e juntarmos nossas forças.
Axé, viva a vida, abaixo o fascismo (definitivamente). 
Tortura nunca mais!