Tuesday, December 1, 2020

bolo-bolo, zap-zap, bobo-bobo...

 bolo-bolo é um livro lançado lá pela década de 70/80 que contém um tipo de utopia comunitária de abrangência global. Eu gostei de tê-lo lido por diversos fatores; quem quiser acesso ao texto, me fala que eu indico como conseguir. É leve, interessante e razoavelmente divertido, além de ser, inevitavelmente, um pouco ingênuo em suas proposições de organização social. 

Escolhi o livro para referenciar neste texto pelo fator ingenuidade. Acho o aspecto ingenuidade um assunto fascinante, talvez -e principalmente -  porque todos tem acesso ao assunto, qualificação para análise e debate. Na verdade não temos escapatória aqui: somos todos quase reféns deste assunto. Não proponho aqui analisar em profundidade o que é a ingenuidade, mas vou me permitir um reducionismo para apresentar como no dicionário (1): "Ingênuo: 1. Em que não há malícia, simples, franco. 2. Puro, inocente, singelo. 

Aqui começa o reducionismo que proponho para o momento: vou usar ingenuidade como contraponto ao malicioso. Da mesma fonte, eu escolhi: "Malícia: 1. tendência para o mal, (...) 3. Sagacidade, astúcia, manha, ronha.". Então mantendo uma perspectiva simplificada, podemos contrapor a ingenuidade à malícia, e neste eixo localizar uma certa inocência da vida, e ainda neste eixo, uma conduta estratégica deliberada representada pela tal sagacidade aí da definição.

O problema começa na nossa própria atitude reflexiva para assumir conscientemente onde estamos sendo ingênuos. Costuma ser uma condição que gera alguma dor, acompanhada do maravilhamento das possibilidades da descoberta (a princípio de qualquer coisa que seja). O contraponto que aparece deveria ser a atitude reflexiva contrária, ou seja, a reflexão sobre "a minha sagacidade" para conquistar o que eu quero.

Pronto, está posto o quadro para justificar minha tese: debater um dilema social demanda uma atitude crítica que contenha estes dois elementos essenciais do espectro da consciência

Venho buscando debater o Dilema das Redes, filme produzido e veiculado no Netflix, sobre as redes sociais da internet, seus usos, processos e consequências. Pelo caminho encontrei umas poucas pessoas que toparam este debate, afinal o filme contém, em minha opinião, declarações fortemente impactantes e é montado com todo a eficiente estrutura fílmica para dar credibilidade e atratividade dos filmes da plataforma.

A generalização de debate seria o assunto que me interessa mais frontalmente, mas neste momento vou me permitir elaborar um juízo crítico a respeito das rodadas de debate deste assunto que participei recentemente. 

Enfrentar o desafio de debate sobre "DILEMA" me parece exigir que entendamos de partida SOBRE QUAL DILEMA iremos nos debruçar. Este problema pode parecer pequeneza metodológica, mas ao aprofundar um pouquinho na perspectiva do próprio filme em questão, vamos encontrar que não há uma explicitação coerente sobre o dilema que é apresentado, deixando maliciosamente ao critério do espectador perceber que há conflito de interesse evidente na elaboração discursiva sobre este dilema. Aqui recomendo a análise do Mauro Iasi sobre isso, links abaixo, e que de forma didática e tranquila abre uma frente de debate consistente e elaborada para o assunto. Não acho que ele esgote as possibilidades ou perspectivas. Até ao contrário: ao elaborar o assunto dentro de uma perspectiva consistente, nos permite construir (e debater) as ideias e conceitos que ele utiliza, concordar e discordar, mas principalmente se manter numa postura crítica sobre qual dilema estamos debatendo.

Não tenho conseguido contribuir de forma positiva (ou melhor, propositiva) nos círculos de debate que me inseri, mas vou deixar aqui as considerações que julgo mais importantes sobre os eventos:

  1. debater assunto de tal complexidade sem uma preparação prévia adequada exacerba o risco de ficar na superfície do assunto;
  2. o tema me parece especialmente escorregadio; mas minha impressão vai além da especificidade do assunto: o assunto está apresentado de forma a esconder os dilemas que diz apresentar;
  3. ao conduzir o debate do tema conforme apresentado pelo próprio filme, assume-se o viés dele; e fazê-lo sem questionar este viés, é uma postura que julgo deliberadamente ingênua (e pode-se substituir sem risco: maliciosamente ingênua).
Meu grande desconforto em seguir participando de debates assim decorre destas condições. Em resumo brevíssimo, posso dizer ele nasce e se alimenta nas atitudes individuais expostas em grupo (nas redes sociais E nestes debates) que tem nítido viés em alavancar as alegrias individuais e em relativizar as tomadas de decisões coletivas. Como consequência, o cenário geral é de cada um procurando as respostas sobre o que fazer para que sua vida fique melhor, e assim, alegremente seguir encobrindo os mais importantes dilemas que poderiam efetivamente gerar alguma ação coletiva para enfrentamento ao dilema. Mas como, se ele nem foi claramente posto?




1. Autélio séc XXI

2. Mauro Iasi analísa o dilema (curto: https://youtu.be/QZAmYwuTd2c ; ou melhor: o video inteiro e excelente: https://youtu.be/mZ0B4s3wTAM )


Friday, August 28, 2020

Origem, função e fundamentação do apego: o caso covid-19 (parte 1: antes da covid)

 Bem, com um título destes e toda a pretensão que pode emergir, fico com o desejo de enfrentar o problema com as ferramentas que disponho. E declaro de partida, para compartir com todos! Gracias Thiago de Mello e seu belíssimo poema (1).

Na gênese deste post emerge a vontade de compreender e partilhar a minha percepção particular das diferentes condições sociais relacionadas neste preciso momento com a covid-19. Em outras palavras, animado pelas conversas com duas pessoas que respeito imensamente e tem sido valiosos interlocutores em muitos aspectos da vida, penso que diversos grupos sociais mundo afora tem a compreensão de que "a pandemia de covid-19 já passou" (2).  Meu interesse deste momento é buscar uma visão não polarizada sobre os mecanismos principais que podem ser até certo ponto generalizados como "construção social". Aqui também declaro que não estou disposto à aceitar as simplificações já sedimentadas, que por sua vez já atuam como fatores de catalização destas próprias generalizações, sejam elas o poder da mídia, das redes sociais, os fatores de classe, ou até o próprio cachorro correndo atrás do próprio rabo do bozoXlula. 

Por favor, veja bem: eu reconheço todos estes fatores, seus imensos poderes e compreendo as explicações que se originam daí. Mas chamo a carta da tese 11 em modo de defesa para tentar buscar uma via de propagação transdisciplinar e humana para um discurso e debate compreensível a quem quiser (será possível?).

Antes da covid:

Nossas relações são cheias de fatores que podem promover apego. De partida quero destacar o poder  como fator das relações, e que, de maneira reflexiva e insidiosa, diverte o apego.

Nesta jornada vou trazer como primeiro elemento de dissecação -ui!, ou melhor, método de análise, os componentes da semiótica de Pierce - vou sumarizar, não é necessário conhecimento prévio, apesar de recomendável: 

Numa das correntes da criação da semiótica, o estadunidense C.S. Pierce (1839-1914) busca uma estrutura que possa se encaixar no nosso formato de pensamento e percepção do mundo. Numa simplificação perigosa de minha parte, segue o foco (recomendo o livreto "O que é Semiótica", coleção primeiros passos, da autora Lucia Santaella). Após muitos anos de elaboração (que período histórico rico), ele chega aos conceitos de:

  • Primeiridade: experimentação e contato com o mundo, percepções, sensações e sentimentos
  • Secundidade: o confronto e a luta da percepção e da ação, "sem o governo da camada mediadora da intencionalidade, razão ou lei"
  • Terceridade: a camada da consciência onde representamos e interpretamos o mundo. 

Que aqui seja o espaço de debate sobre a semiótica, o poder ou o apego, ao invés de me preocupar, mais me alegra a possibilidade do debate. Até porque o ponto de partida para o encaixe semiótico mencionado acima para qualquer deste três pode ser igualmente rico e frutífero. Entretanto me atendo ao que desejo como pontapé de partida, destaco que cada pessoa e cada grupo social que tenho contato demonstra uma forma de reação peculiar relacionado ao confinamento, à possibilidade de contágio (e perdas relacionadas), em contraponto ao tempo já passado. Aqui emerge importante fator de diferenciação social pelas sociedades, países e grupos sociais, posto que o impacto desta pandemia já se mostra bastante diferenciado.

E para finalizar este post, reitero meu desejo: buscar um debate sobre como é percebido, configurado e depois declarado pelas pessoas a definição sobre a covid-19 de que "a pandemia passou", sob todo e qualquer aspecto que se ofereça, seja esta declaração presente ou futura.






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1. https://blogdaines.wordpress.com/2015/12/20/para-repartir-com-todos-do-poeta-brasileiro-thiago-de-mello/

2. sei que aqui tem uma enorme brecha para debate, e estou aberto para sua colaboração, qualquer que seja realizada com respeito e vontade de contribuir genuína.

Sunday, May 31, 2020

Um peixe em minha vida...

Experimentando o tal do "isolamento social" que se difundiu com o corona virus, recebo de um amigo das antigas um video relatando outro evento de grandes proporções que me impactou profundamente.
O tal video (link abaixo) pega o relato de alguém que esteve a bordo durante o primeiro acidente de grande porte ocorrido na plataforma de Enchova, PCE-1, em agosto de 1984. Entrei na Petrobras exatamente neste período (eu estava fazendo curso de formação em Macaé quando ocorreu este acidente), e posteriormente conheci muitos do que passaram por este evento lá a bordo.
...
Sobre o video, preciso destacar alguma inconsistência factual (a principal delas deve-se ao fato de somente ter morrido gente no "episódio" da queda da baleeira, ou seja, não relacionado diretamente com o acidente, mas um "sub acidente" dentro do evento principal). Outras inconsistências relevantes derivam do uso de imagens inadequadas, de outras unidades da Petrobras, e coisas do tipo, que podem levar a crer em desdobramentos que não correspondem aos fatos, mas que dentro do contexto apresentado não diminuiu em nada a emoção do relato, e especialmente as lembranças dos aprendizados (individuais e coletivos), e a construção histórica de nossas vidas, da Petrobras enquanto instituição, e sem medo de errar, da indústria do petróleo como um todo.
...
A PCE-1 foi meu principal local de trabalho por uns 5 anos, sendo que iniciei aos 21 anos de idade... Penso que a importância daquelas experiências vividas lá na minha formação profissional (inegável) e pessoal (que entendo como mais profunda ainda) foram co-fundadoras essenciais do ser que sou hoje. A vida nas plataformas naquela época, ainda antes do final da ditadura militar no Brasil e com  tecnologia de comunicações incipientes, tinha um distanciamento do mundo e um grau aventuresco que já funcionava como uma "cola social" daqueles grupos e das pessoas que ali se encontravam.
Para dar uma ideia aos mais jovens, não havia nem um telefone convencional para ligar para números domésticos, apenas para dentro da própria Petrobras; daí que para manter contatos pessoais falávamos uma ou duas vezes por semana via rádio, com direito a frases memoráveis como "te amo, meu amor, tenho muitas saudades.... câmbio!" 
Mas longe de ser por aí os fatores mais impactantes, ter vivido uma sociedade com tais características, que gostaria de destacar:
  • onde não circulava dinheiro, (exceção aos que fumavam, que compravam seus cigarros no "quiosque" que abria sob demanda, e quase mais nada que não fosse adquirido apenas uma vez durante uma jornada de 14 dias, tipo sandália havaiana, cortador de unha, etc)
  • cama, banho e comida estavam plenamente asseguradas
  • todos lá sem exceção tinham emprego formal e salário, 
  • todos se sentiam bem remunerados (assumo e uso esta generalização como ampla e quase incontestável, mas estou aberto à críticas se alguém percebe diferente)
  • a segurança a bordo era percebida ao mesmo tempo como inerente à atividade e transcendente à sociedade, especialmente neste período entre grandes acidentes da PCE-1 (outro evento de grandes proporções ocorreu em 1988)
  • todos tinham acesso á lazer, banho quente, e roupa lavada
paro por aqui por lembrar que as diferenças individuais vão se acentuando ao descer nesta lista, pois se ninguém mesmo usava dinheiro, já o lazer, por exemplo, era claramente "classista", reproduzindo assim a própria estrutura social da época, que, de forma simplificada, era composta de: um eng chefe, dois ou tres eng sub chefes, sete ou oito técnicos capatazes, uns setenta funcionários de remuneração variável entre técnicos e administrativos, outros setenta subalternos subcontratados cujo treinamento recebido era questionável e se sabiam subalternos (copeiros, cozinheiros, montadores de andaimes, pessoal da movimentação de carga, pintura e limpeza, etc). 

Nesta micro sociedade amadureci sob grandes responsabilidades, criando amizades atemporais, convivendo com diversos tipos de pessoas que nunca mais haveria de conviver sob circunstâncias tão próximas, e sem dúvidas, tão propícias a uma certa fraternidade e compaixão.
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Daí revendo meus momentos ao assistir o relato, lembro de muita coisa que jaz nos fundamentos do que ora se apresenta novamente no enfrentamento coletivo do corona, atualmente no nível planetário (ou quase).
Vou destacar, pra tentar aprofundar adiante:
  1. a estrutura física disponível para emergências, sua adequação e o preparo do grupo para seu uso
  2. a estrutura da comunicação formal antes e depois dos acidentes
  3. a comunicação informal e seu impacto naquela sociedade e situação
  4. perfil sociográfico, exclusão relativa e "exo-exclusão"
  5. os vínculos afetivos que se criam em isolamento
  6. tabus e preconceitos, ontem e hoje
  7. traumas coletivos, medo e aprendizado








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1) Video: Escapando de uma plataforma de petróleo: https://youtu.be/N5NFSfw53cE (21/03/20202)
2) outra narrativa, mais técnica e mais isenta: http://inspecaoequipto.blogspot.com/2013/05/caso-016-plataforma-de-enchova-blow.html?m=1 (obs: contém link para reportagem da globo, que merece crítica particular não realizada aqui).

Saturday, March 28, 2020

Agora já é gratidão ao Bolsonaro!

Pelo post anterior recebi basicamente dois tipos de resposta (obrigado a quem me respondeu, só faz sentido assim...):
1. "boa, bom texto!", e
2. "aquele imbecil genocida.... ainda vai capitalizar em cima disso depois"

Um único amigo comentou sobre o título provocador, mas eu espero ter me justificado como dedicatória daquele texto.

Para esse aqui, que dedico a quem quer um mundo mais legal do que isso (vou explicitar isso como declaração de princípios, mas será em outro texto), daí por exclusão o tal bozo está de fora com todos os que ainda o apoiam como líder. E vou ser direto. Mas antes preciso declarar que a postura 2 acima me deixa perplexo pela falta de ideias, de qualquer ideia para contrapor esta situação, neste mundo séc XXI, cheio de ferramentas, de gente bem pensante, e de História construída e a construir...

A postura escolhida pelo bozo (pedir a volta da normalidade contrariando tudo e (quase) todos) está de acordo com os princípios que eu identifico que ele prega. Não há novidade. E posso resumir tranquilamente que vejo o racional por trás da atitude e até onde ela tem fundamento, se não, vejamos:
1. pelos registros de consulta rápida, a única causa de morte direta associada ao crash de 1929  nos EEUU foi o aumento de suicídios, e mesmo assim nem tão pronunciado de forma a dizer que foi muito impactante enquanto resultado, mas definitivamente devido aoo aspecto tabu do tema.
2. Por outro lado, a tal da gripe espanhola da 1918-19 deixou em seu rastro alguma coisa entre 50 e 100 milhões de mortes - dependendo da fonte, metodologia de contagem, etc. Foi gente praca.
3. O virus de agora parece já ter mostrado que suas características e efeitos demográficos são bastante distintos do evento histórico "gripe espanhola" (seletividade etária, letalidade por faixa etária, etc),
4, portanto nada parece indicar que teríamos um impacto nem comparável com aquele por causa deste corona vírus de agora mesmo que todas as demais condições fossem similares,  ou seja, mesmo que voltemos a mais usual das normalidades.

Reconheço que os dados são os que estão disponíveis e que posso estar enganado com relação a isso, mas esta é uma leitura perfeitamente possível dos quadros e informações disponíveis.

Então aqui está o ponto de ligação: as estruturas de sustentação sociais hoje são muito diferentes das de 1929, especialmente ligadas à produção e distribuição de alimentos, e mais ainda, as interligações econômicas globalizadas, representadas por esta excrescência (praticamente) descontrolada chamada bolsa de valores. Um crash como aquele iria trazer perdas colossais para a população, centradas pela ótica do empobrecimento (vide crise de 2008 e aumento sério dos moradores sem teto nos EEUU, e outros impactos de perdas sociais).

Lembrando que estamos olhado em retrospectiva e pela ótica que pode ser encontrada nesta "liderança" que temos, certo?

Entretanto nada do que foi dito aí em cima diminui o horror humano que está por trás de muitas mortes. Podemos até encontrar muitos aspectos que aumenta o horror, como a seletividade etária atual ("alguns velhinhos vão morrer"), e seu quase não comentado corolário de que isso vai ajudar no equilíbrio das contas da previdência social... Aqui começa o caminho que vai levar ao título deste artigo.

A declaração do bozo contém uma assertiva forte relacionada com a perspectiva dele do valor da vida humana (já sabido), com o valor do respeito aos mais velhos (novidade) e essencialmente, com a decisão sobre o que devemos fazer sobre isso, pessoalmente e coletivamente. Ao deixar explícito esta questão, ele expõe não só estes valores, como a estrutura social de decisão que temos hoje, e por definição reflexiva, a estrutura que teremos que revisar ao final da crise.

Uma decisão social desta natureza pode ser encarada como uma "escolha de Sofia", (filme de 1982, veja nas notas), onde teremos que escolher entregar um valor para preservar outro, sendo que os dois valores são essenciais. Eu definitivamente não considero que estamos diante de uma "escolha de Sofia", mas entendo que algumas pessoas podem achar isso. E entendo também que haverá pessoas que defenderão isso sem ter que "entregar nada", e que portanto são apenas mal caráter, mesmo. Mas não deixo de reconhecer que este assunto pode (e deve!) ser debatido de forma consciente, adulta e consequente, sob pena de não estarmos construindo uma decisão social por vias decentes, mas sim permanecendo ao nível argumentativo empobrecido que já mostrou o que pode fazer, nas eleições de 2018.

Se ainda não me fiz claro no que penso, posso colocar a questão de outra forma: como equilibrar a equação entre as sentenças "o estado tem o direito de exigir que o cidadão sem sintomas fique em casa neste momento" e "entendo as formas de contágio, os riscos de exposição minha e dos outros e decidi não cumprir o isolamento" dentro do momento presente? É preciso ainda também assinalar que apenas nos países onde a liberdade é relativa (China, Taiwan, Korea) o isolamento teve eficácia - sendo compulsório...
Ou ainda: se o isolamento for compulsório, onde irá diferir de uma possível compulsoriedade de ida ao trabalho por todos? No consenso cartesiano?

Daí que este momento grave e triste me possibilitou perceber com clareza onde quero atuar na vida acadêmica, na ligação de muitas áreas que sou afeito: "os mecanismos de decisão social e a participação do indivíduo, mediado pela percepção de risco". Muitas áreas se sobrepõem e se misturam neste tema, e ter clareza da temática vai possibilitar o desdobramento e aprofundamento nos mais diversos aspectos de estudo, aí incluídos História, Filosofia, Psicologia Social, Ciências Políticas, e claro Sociologia.

E onde tem gratidão?

Em três aspectos: além da visão pessoal desta descoberta, sinto gratidão pela expressão clara onde vejo nossa atuação em resposta aos amigos que estão na condição 2 lá de cima: considero evidente que ele nos deu elementos para aprofundar os mecanismos de participação nas decisões sociais mais imediatas, e daí que um montão dos conhecidos que escolheram o bozo podem ser chamados novamente ao debate, com muitos (espero eu) resgates ao trilho do pensar que foi embotado pelo anti petismo - e essencialmente até em convergência com o anti petismo, no sentido da urgência de se revisar os mecanismos de decisão social. E em terceiro lugar, um aspecto fundamental que decorreu da análise histórica pessoal dentro deste tema: houve uma eleição onde o mote era "a esperança vai vencer o medo". Eu acredito que isso contém o embrião e representa um pilar do que precisamos discutir: com medo temos um tipo de processo decisório. Com esperança, outro. O medo ganhou na eleição. Agora não podemos deixar que o discurso pobre e sem argumentos substitua e subverta nos mesmos moldes um processo decisório social de tamanha relevância. Sem paternalismos. Sem ingenuidade forçada. Sem desrespeito.

Notas
https://www.pnas.org/content/106/41/17290/tab-figures-data sobre suicídios em 1929
A escolha de Sofia, resumo: "A trama dirigida por Alan J. Pakula, a partir do romance de William Styron, conta a história de Sofia, uma polonesa que, sob acusação de contrabando, é presa com seus dois filhos pequenos, um menino e uma menina, no campo de concentração de Auschwitz durante a II Guerra. Um sádico oficial nazista dá a ela a opção de salvar apenas uma das crianças da execução, ou ambas morrerão, obrigando-a à terrível decisão." de https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2015/08/o-que-significa-a-expressao-a-escolha-de-sofia-usada-pelo-secretario-giovani-feltes-4822225.html
https://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2020/03/25/analise-quanto-a-tatica-politica-fala-de-bolsonaro-foi-perfeita.htm


Wednesday, March 25, 2020

Em defesa do Bolsonaro...

... ou a problemática da unanimidade.

Assistimos (quase todos) estarrecidos ao pronunciamento de Bolsonaro deste 24/03/2020, onde, a contra senso de toda a comunidade acadêmica e demais lideranças institucionais, minimiza o que a OMS já definiu como uma pandemia e que o mundo todo vem enfrentando com estratégia similar (isolamento social, etc). Em postura de ataque aos governadores, minimiza os efeitos do problema e recomenda o fim da quarentena / isolamento, reabertura de comércios e escolas, etc etc.

Vou deixar de lado a parte tragicômica de ter um "líder" com uma postura mal pesada, fora de contexto, descoordenado e  com aquele ar de pateta, fechando um pouco os olhinhos para ler o texto com a dificuldade de sempre, o que nos deixa aberta a possibilidade de ser pura deficiência visual, de leitura e compreensão do texto, ou o mais provável retardo entre a interpretação do texto pré-lido e a articulação vocabular, pretendo me focar no conteúdo daquela fala, e que contém elementos definidores das políticas em disputa e nas definições futuras em muitas esferas. Afinal ainda precisaremos decidir politicamento o que faremos disso tudo. Agora e sempre!

Do outro lado do mundo - e quase simultaneamente, o modelo seguido pelo bozo ensaia a mesma postura e conclusão, porém contendo elementos os elementos argumentativos que no pronunciamento não estão explicitados. Segundo El Pais (link abaixo), "Trump pretende afrouxar restrições": encerrar o isolamento - ou modificá-lo tecnicamente, conforme aparece em seu argumento -  e trazer de volta a normalidade social e econômica, mesmo tendo consciência de que isto custará vidas, pela racional compreensão de que os custos totais desta decisão já indicam que podem ser muito maiores do que sua compreensão dos valores das vidas humanas que serão perdidas).

Destaquei acima a dinâmica dos valores para que possamos aprofundar no que interessa: sendo a política uma atividade humana de decisão coletiva dos rumos daquela coletividade, estamos vivendo tempos interessantíssimos (pela pobreza e atraso inacreditáveis) no desenrolar das disputas, sem que o debate se aprofunde até um ponto que possamos efetivamente construir juntos uma decisão argumentada*. Afinal estamos falando de política, certo?

Então ao assumir sua postura publicamente (e aqui sem aprofundar nos fatores estratégicos que bozo e sua equipe podem ter levado em consideração), o presidente (eleito, lembra?) explicita francamente - ainda que sem argumentar e, acredito eu, até sem entender direito - um conflito humano de imensa profundidade: as diferenças entre o valor da vida humana individual e o valor econômico da vida em grupo daquela coletividade. E, claro, as consequências relacionadas com as decisões a partir deste ponto.

Temos muitas entradas e conceitos, que poderiam ajudar a desenvolver a partir deste ponto. Por exemplo: "A sociedade de risco global" do alemão Ulrich Beck, detalha sobre como este assunto -  transnacional por princípio - vem evoluindo desde 1986, apoiado por de uma "irresponsabilidade organizada". Ou: uma revisita ao Leviatã de Thomas Hobbes, que pode ser enviesada pela substituição do ponto central relacionado ao poder concedido, para repor "evitar uma morte violenta" por "evitar uma morte hororrosa". Ou Karl Popper e seu paradoxo da tolerância. Recomendo vivamente estas leituras e de outras que possibilitem o desenvolvimento e aprofundamento destas aspectos, mas prefiro me arriscar na busca de uma via direta ao ponto que possa nos auxiliar neste momento.

Nossas decisões coletivas se baseiam em valores de fundo. Nossos processos atuais de escolha representativa estão repletos de situações que, ou escondem os valores de fundo, ou pior, os confrontam entre si de uma forma (deliberada, penso eu) a gerar confusão, ao invés de propiciar um amadurecimento coletivo sobre os conflitos que ali existem.

Neste momento onde a humanidade praticamento toda enfrenta uma pandemia, em que a taxa de fatalidade está claramente associada à população idosa e em fragilidade (sanitária e social), temos uma nova chance histórica de assistir ao desenrolar dos eventos e decisões políticas transnacionais que nos afetarão a todos - todos sem exceção, para buscar arranhar as superfícies deste debate e expor o que está sendo efetivamente decidido.

Vou tentar um exemplo prático: um candidato que se apresenta dizendo que a tortura é método válido (de investigação ou punição) traz no seu bojo (bozo?) uma clara sinalização sobre sua visão relativa ao valor da vida humana, mas não fala isso! O que é falado e que contém esta visão pode ser resumido em: <<não podemos mais tolerar "ladroagem", custe o que custar>>. Afinal a fala "Deveriam ter sido fuzilados uns 30 mil corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique Cardoso" deixa isso bem evidente. Queira o eleitor dele, queira não, com o pueril argumento de que "ele fala isso mas não é assim que ele pensa..."

Aqui está o ponto chave que penso termos ganhado neste momento. Esse custe o que custar (no caso do exemplo acima poderia ser "algumas vidas humanas torturadas por engano") é que está em jogo. Agora e sempre! Só que antes eram "os corruptos", e agora são nossos pais, tios, avós... E certamente  "mais alguns dos nossos", que isso, no jargão militar, seria "danos colaterais". Aliás, dando crédito ao meu irmão, que ontem mencionou ter visto um artigo que falava sobre as estratégias militares de guerra, sociedades que participam(ram) mais regularmente em guerras e as possuem como legado histórico já tiveram que lidar mais abertamente com o "envio dos nossos jovens para a guerra como forma de preservar nossos valores e sociedade". Talvez por isso possa ser argumentado publicamente.
Também é necessário acrescentar a perspectiva de que, no Brasil, a percepção geral de guerra ainda parece carecer de uma sensação mais efetiva / afetiva que perpasse mais perceptivelmente as diversas classes sociais, seja pela "falta" da guerra interna histórica que ocorreu em outras sociedades, seja pela permanente "guerra interna" que praticamos e que banalizou um número enorme de perda de vidas em muitos contextos, e que aqui não podem ser relativizados: fome, falta de assistência médica, bala perdida, "bala achada" disparada pelas forças públicas, etc. 

Vou concluir resumindo minha visão do momento: a abordagem militarizada contém de forma inequívoca um componente de "valoração" da vida humana individual que precisa necessariamente ser posicionada abaixo do coletivo. Isso justifica parcialmente o mote "estamos em guerra contra as drogas". Mas estar em "guerra contra o virus" torna esse mote não só obsoleto em seu uso, mas também um cruel delator das opções na mesa. Contra tudo e contra todos, Bolsonaro fez publicamente sua opção.

E relembrando outros momentos onde fomos chamados à mudança de comportamento, houve um momento que o destaque era o "vibrião do cólera" e o seu combate, agora voltamos à cena, com o "histrião do corona"...



PS: dedico este texto aos colegas e conhecidos que em 2018 optaram e puseram suas expectativas e votos neste cidadão Bolsonaro. Junto a tantos outros que haviam votado antes no PT e se desiludiram, para os quais os argumentos sobre as fragilidades sociais desta opção eram rechaçados primariamente só pela oposição "ao que está aí", serão importantes agentes de transformação que será necessária à frente. Que a possibilidade de argumentação e a defesa da vida se encontrem de forma mais suave e coerente daqui pra frente!
E por isso, convido a comentários, discordâncias e sugestões para as transformações sociais que estamos sendo convidados a viver daqui pra frente.



Notas e referências:
https://brasil.elpais.com/internacional/2020-03-25/trump-pretende-afrouxar-as-restricoes-antes-de-12-de-abril-enquanto-casos-de-covid-19-disparam-nos-eua.html
Política, na Wikipedia: (do Grego: πολιτικός / politikos, significa " de, para, ou relacionado a grupos que integram a Pólis ") denomina-se a arte ou ciência da organização, direção e administração de nações ou Estados; a aplicação desta ciência aos assuntos internos da nação (política interna) ou aos assuntos externos (política externa). Nos regimes democráticos, a ciência política é a atividade dos cidadãos que se ocupam dos assuntos públicos com seu voto ou com sua militância.
* chamo decisão argumentada pela ótica de Habermas do espaço social de discussão, ou ainda de Rorty e seu "ironismo liberal", como contraponto à decisão intempestiva, autoritária ou ditatorial, mesmo declarando aqui minha visão das limitações conceituais ou discordando destes autores sobre suas avaliações dos desdobramentos ou aplicabilidades de suas teorias.