Tuesday, February 13, 2024

Carta para um ex-amigo

Sofrimento... a polarização política que assistimos nos últimos anos e que teve seu episódio mais recente nas eleições de outubro/2022 (Lula derrotando Bolsonaro por uma margem mínima de votos) contém um pesadelo. Sob qualquer ângulo que se escolha, será um pesadelo. Que ainda terá desdobramentos, em sua qualidade de pesadelo (social, coletivo e alguns mais, como pretendo evidenciar a seguir)

Eu considero que tive um grande privilégio por não ter convido localmente sob a presidência Bolsonaro. Morando em Portugal durante todo esse mandato, acompanhei o desenrolar das coisas pela mídia internacional, pelos canais sociais, e pelos contatos dos amados que conheço e respeito, e que ficaram no Brasil, vivendo esses anos duríssimos. Desta forma também não tive muitas oportunidades de contato com quem havia votado em Bolsonaro em 2018. Desde sempre meu lado era claro: esse então candidato declarava abertamente apoio a um torturador, e dos conhecidos por ser dos mais atrozes e cruéis. 

Aqui já está reiterado meu lado, mas insisto: para mim é absolutamente insuportável, sob qualquer circunstância, apoiar um torturador. Menos ainda para me representar para qualquer coisa que seja. Torturador é torturador e precisa ir a julgamento sério – coisa que o Brasil ainda nunca fez (e que tenho esperança que esse dia não tarde). 

Assim, aos meu conhecidos que votaram em Bolsonaro em 2018 fica minha declaração de decepção completa e absoluta. E de nenhuma intenção de voltar a ter qualquer contato até que essa realidade esteja superada, ou seja, que o assunto tortura seja encarado frontalmente comigo e que se argumente com seriedade, consistência e lógica (e, claro, com sensibilidade humana) como você pode apoiar uma pessoa que tem um torturador emérito como ídolo declarado. Sem isso não há nenhuma chance a vista para reaproximação afetiva

Em 2022 travou-se uma batalha entre a continuidade do projeto de Bolsonaro, já depois de um mandato que teve uma pandemia de covid19 no meio, caos na saúde, casos de vacina ainda a ser investigado, a reunião ministerial de “passa boi passa boiada”... E mortes, muitas mortes que poderiam ser evitadas. Daqui de Portugal (onde não houve nenhuma morte de conhecido meu), acompanhei com horror a morte de vários amigos próximos, alguns primos e muitos conhecidos. Em agosto de 2021 fiz a última contagem desses conhecidos diretos que haviam morrido pela covid, e somaram, os amigos meus e de minha companheira à época, 86 pessoas que relembramos pelo nome, com pesar e tristeza infinita, não apenas pela pandemia, mais como essas mortes se deram. Mas isso é, no quadro geral, pequeno, se comparado com os descaminhos por atacado do período.

O problema que resta de forma inequívoca será então como faremos, enquanto sociedade, para reencontrar o caminho das informações que sejam confiáveis e que possam de alguma forma substanciar qualquer debate que tenha como propósito reduzir essa polarização.

[nota: originalmente esse texto tinha uma pessoa específica como destinatário, mas que ao construir o texto, percebi que não aconteceria essa remessa. Daí virou esse post aqui. O fato motivador foi um audio que recebi em resposta a uma sugestão de apoio às apurações sobre tentativas de golpe de estado após as eleições de 2022, que elegeram Lula. Abaixo transcrevi de forma documental o audio recebido, para que me lembre as formas argumentativas e os argumentos mesmos que me motivaram]

-início de transcrição-
... essa matéria... a princípio você veio com uma matéria que era sobre eleições em nosso país, né? E que é um troço que pega muito na veia... a gente vai falar sobre isso...

E aí você veio com esse assunto que... assim: toda vida importa, não é cara? Claro que importa. E o mundo está cheio de mazelas... e essa mazela está um pouco longe da nossa realidade, do Brasil

E ai eu perguntei o que é isso porque você veio com um outro assunto primeiro que foram as eleições em nosso país, e isso foi muito punk... eu fiquei surpreso de você achar... enfim, apoiar Lula.

Eu aprendi com você a gostar da Petrobrás. E foi a primeira empresa que ele arrebentou. Inclusive, nessa primeira semana de governo, só os “falar” dele, a Petrobrás teve um prejuízo na bolsa que dava para bancar seis anos de bolsa família.... é uma coisa de louco...

Quando você me mandou aquela mensagem eu pensei “não sei o que ele tá vendo de lá...” porque nossa imprensa aqui já era, velho! Foi totalmente corrompida. A Globo perdeu a concessão desde o ano passado e logicamente que o Bolsonaro não ia renovar porque ela tem uma dívida imensa com o Estado. A Globo, entre aspas, funcionava como uma estatal, não é amigo? O governo que bancou sempre aquela onda toda e sempre teve uma dívida muito grande, então ela resolveu apoiar o cara... então as coisas que estão acontecendo aqui, a grande mídia não fala, ou não dá a devida importância, quando não distorce.

Amigo, a situação do país está muito esquisita... Primeiro porque esse cara nunca poderia ser presidente porque ele é um réu condenado em 17 processos, por 19 juízes, em todas as instâncias. Então, logicamente o sistema fez uma manobra para recolocar ele no lugar.

E aí é complicado, porque com isso tem que calar pessoas. Hoje em dia nós temos presos políticos: temos artistas, temos jornalistas, temos deputados... e até um líder xavante, preso... Nenhum deles tem direito à defesa, porque os advogados não tem acesso aos processos... processos que não existem, ou são ilegais...

Então é isso, cara... Eu não sei... o rumo está muito esquisito, tá uma... pra gente que era criança e que viveu sob uma ditadura, a ditadura agora é civil: as pessoas estão sendo cassadas, a imprensa está sendo calada... e é isso! Sinceramente amigo, o negócio aqui está muito esquisito.
Não sei as notícias que você recebe, mas parece que não são as mesmas que eu sobre o que está acontecendo em nosso país..

-fim da transcrição-


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