O modo capitalista de produção vem, há bastante tempo, sendo estudado em profundidade, e apresenta contradições gigantescas já bem conhecidas. Seu principal sintoma é a permanência de fome, miséria e/ou falta da infra estrutura elementar para a vida digna para a maior parte da população do mundo, enquanto uma pequenina parcela da humanidade pode ser imensamente rica materialmente.
Eu partilho da visão de que a decadência do modo capitalista de produção é uma questão de tempo, não somente porque é ruim e ineficiente sob a ótica social, mas principalmente porque todo modo de produção se transforma com o desenrolar da história, e por fim acaba "passando", seja por caducar, seja por meio de reforma ou de revolução. Mas não é disso que eu vou seguir tratando aqui. É de sonhos!
O que me chamou a atenção para a ideia que vou tratar nesse texto foi o consumo, em um café daqui de Portugal, de um bolinho que no Brasil se chama sonho (aqui em Portugal chama-se bola de Berlin). Gosto mais do nome"sonho". Vou seguir chamando assim o tal bolinho, porque eu gostava bastante dos sonhos de minha infância, na periferia bem distante da cidade do Rio de Janeiro.
No caso era uma periferia diferente do que é hoje: Jacarepaguá era bastante rural, local de moradia de gente simples e do surgimento do que eu chamo de e com uma "proto classe média". Hoje verifica-se um processo de favelização por um lado, e ao mesmo tempo de "condominiação" e muros altos, todos dentro do contexto da "milicianização" de uns e de outros, resultado, entre outras coisas, da desconexão de órgãos essenciais do estado para assegurar cidadania com a articulação popular pela autodeterminação.
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Então fugindo da armadilha que propus no título, o sonho que comi hoje me lembrou o sonho da minha infância...
A pastelaria portuguesa, marcada pela sua tradição e seus ingredientes típicos, coloca dentro da massa de pão frito um creme cuja receita seria derivada de gema de ovo, como uma boa parte da principal linha doceira de Portugal. O creme que estava na bola de Berlin que comi hoje me lembrou o creme que comia na década de 1970 no Rio de Janeiro: bem amarelo, doce sem "excesso demasiado", e sem dúvida contendo ainda alguns vestígios do doce de ovos. Mas já não é o que provei há algum tempo.
Ainda havia doce de ovos no sonho da minha infância.
Em minha última ida ao Brasil, uns anos atrás, tentei um sonho de padaria para ver como estaria, até em comparação com o que havia provado por aqui. Na aparência seguia bem parecido, e nem preciso postar a foto aqui. Minha análise sugere que a pastelaria brasileira (pelo menos a carioca, com certeza) se especializou em fabricar doces e assemelhados em esmeradas apresentações, entretanto desconectando definitivamente a aparência (bonita) do sabor (a dita experiência gustativa do consumidor). Não achei mais nenhum vestígio de doce de ovos nos sonhos cariocas. Agora o que vem como recheio é um creme de cor amarelo claro, textura gosmenta, sem gosto definido (ruim mesmo), muito doce e sem personalidade, caracterizando o que descrevi aqui como uma forte decadência.
O que percebo na bola de Berlin de Portugal que comi hoje é a similar decadência do recheio, que atualmente aqui se assemelha em qualidade ao da minha lembrança de infância. Os indicativos da decadência estão muito mais visíveis no Brasil de hoje do que em Portugal, por uma série de fatores que não cabe detalhar aqui hoje. Porém o que ficou muito claro para mim é a semelhança direta entre os processos de decadência daqui de Portugal e os que se passam no Brasil. E que essa decadência específica, sem dúvidas, se deve às mudanças nos processos de modernização do fabrico: novos métodos, atualização da receita, etc.
O fator principal que ordena tais alterações certamente mira o aumento da lucratividade na operação da padaria.
As metas "universalizáveis" disso, dentro desse modo de produção que busca sempre capitalizar, tem dois objetivos principais:
- baratear os custos de produção: insumos mais baratos, produção mais acelerada, menor consumo de energia, etc
- aumentar o volume de vendas: através do aumento da base de clientes, da "fidelização" dos clientes (que pode ser, por exemplo, com mais açúcar na receita, ou com o custo de venda por unidade um pouco menor), vendas casadas, novos "modelos" de produtos, etc
O resultado final buscado (aqui, ali, ou acolá) é sempre o mesmo: aumentar a lucratividade. E isso nem é visto como coisa feia; em muitos círculos até pelo contrário. Mas leva diretamente ao ponto central que vi e quero compartilhar com você:
Uma das consequências inevitáveis e inescapáveis desse processo é a regular e sempre presente decadência de todo e qualquer produto que seja levado ao mercado para consumo de massa. Insisto: esse modo de produção leva sempre à decadência na qualidade de TODO E QUALQUER produto levado ao mercado para consumo de massa.
Sobram alguns pontos que já adianto, e devem servir para desenvolvimentos posteriores:
1. o que porventura não entra em decadência são os produtos produzidos para as classes superiores, cujo custo de venda é inacessível para a enorme maioria da população.
2. o decaimento na qualidade dos produtos segue regras gerais de substituição por novos tipos, novos modelos, novos formatos, etc, etc, quase sempre a preço mais baixo por unidade, mas em qualidade agora assumidamente inferior (veja, por exemplo, a reportagem da BBC Brasil intitulada "Como leite deixou de ser leite no Brasil", link abaixo).
Para concluir, quero salientar alguns aspectos disso:
- A velocidade da decadência dos produtos precisa se ajustar aos parâmetros econômicos da sociedade onde acontece: não tão rápido que afugente os consumidores, não tão lento que permita a substituição dos fornecedores por alguma organização social local. É mais fácil controlar a velocidade de produtos "novos" do que de produtos "tradicionais", por razões que me parecem óbvias.
- A decadência que me refiro participa do processo de subsídio da produção de produtos de consumo para as classes altas (veja por exemplo como o preço de venda dos carros populares é usado para "baratear" os carros das classes mais elevadas), e até mesmo o desenvolvimento tecnológico geral da humanidade (representada parcialmente pelos investimentos privados, mas principalmente porque a tecnologia de base é majoritariamente financiada pelos governos de todo o mundo)
Claro que não desconheço outros fatores, como oferta e procura, propaganda e marketing, eficiência e efetividade, financiamento e alavancagem, etc. Mas essa ponta que busco aqui tornar visível e evidente parece oferecer uma conexão importante para os que não estão antenados com o processo todo, mas que buscam entender.
Como resultado de longo prazo, essa decadência se torna observável por qualquer um de nós, afinal os produtos que consumimos sempre pioram de qualidade e são regularmente substituídos (ou os sonhos que são vendidos aí perto de tua casa melhoraram com o tempo?). E isso acaba por nos dirigir ao ponto central: a decadência inevitável dos produtos do mercado dentro modo de produção capitalista é uma conexão visível do processo mais abrangente onde o rico fica sempre mais rico. E isso só pode ser alcançado através da socialização da pobreza. Ou da piora dos produtos.
A você, eu desejo bons sonhos!
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Atualização:
segundo o site https://ncultura.pt/bolas-de-berlim-a-portuguesa-historia-e-receita/:
"História
Sim, há algo de alemão nestas bolas. A verdade é que a base desta receita foi trazida por algumas famílias judias alemãs que, por altura da 2ª Guerra Mundial, encontraram refúgio em Portugal. Por terras germânicas são mais conhecidas por “Berlinesa” (Berliner/Berliner Pfannkuchen/Berliner Ballen).
Mas não se pense que este bolo se mantém fiel à receita original. O recheio de um doce à base de frutos vermelhos foi substituído por um dos doces mais comuns e apreciados em Portugal – o doce de ovos."
Link da reportagem da BBC:
https://www.youtube.com/watch?v=tCbJdxHDeMA&pp=ygUQYmJjIGJyYXNpbCBsZWl0ZQ%3D%3D
https://www.youtube.com/watch?v=tCbJdxHDeMA&pp=ygUQYmJjIGJyYXNpbCBsZWl0ZQ%3D%3D
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