Wednesday, March 25, 2020

Em defesa do Bolsonaro...

... ou a problemática da unanimidade.

Assistimos (quase todos) estarrecidos ao pronunciamento de Bolsonaro deste 24/03/2020, onde, a contra senso de toda a comunidade acadêmica e demais lideranças institucionais, minimiza o que a OMS já definiu como uma pandemia e que o mundo todo vem enfrentando com estratégia similar (isolamento social, etc). Em postura de ataque aos governadores, minimiza os efeitos do problema e recomenda o fim da quarentena / isolamento, reabertura de comércios e escolas, etc etc.

Vou deixar de lado a parte tragicômica de ter um "líder" com uma postura mal pesada, fora de contexto, descoordenado e  com aquele ar de pateta, fechando um pouco os olhinhos para ler o texto com a dificuldade de sempre, o que nos deixa aberta a possibilidade de ser pura deficiência visual, de leitura e compreensão do texto, ou o mais provável retardo entre a interpretação do texto pré-lido e a articulação vocabular, pretendo me focar no conteúdo daquela fala, e que contém elementos definidores das políticas em disputa e nas definições futuras em muitas esferas. Afinal ainda precisaremos decidir politicamento o que faremos disso tudo. Agora e sempre!

Do outro lado do mundo - e quase simultaneamente, o modelo seguido pelo bozo ensaia a mesma postura e conclusão, porém contendo elementos os elementos argumentativos que no pronunciamento não estão explicitados. Segundo El Pais (link abaixo), "Trump pretende afrouxar restrições": encerrar o isolamento - ou modificá-lo tecnicamente, conforme aparece em seu argumento -  e trazer de volta a normalidade social e econômica, mesmo tendo consciência de que isto custará vidas, pela racional compreensão de que os custos totais desta decisão já indicam que podem ser muito maiores do que sua compreensão dos valores das vidas humanas que serão perdidas).

Destaquei acima a dinâmica dos valores para que possamos aprofundar no que interessa: sendo a política uma atividade humana de decisão coletiva dos rumos daquela coletividade, estamos vivendo tempos interessantíssimos (pela pobreza e atraso inacreditáveis) no desenrolar das disputas, sem que o debate se aprofunde até um ponto que possamos efetivamente construir juntos uma decisão argumentada*. Afinal estamos falando de política, certo?

Então ao assumir sua postura publicamente (e aqui sem aprofundar nos fatores estratégicos que bozo e sua equipe podem ter levado em consideração), o presidente (eleito, lembra?) explicita francamente - ainda que sem argumentar e, acredito eu, até sem entender direito - um conflito humano de imensa profundidade: as diferenças entre o valor da vida humana individual e o valor econômico da vida em grupo daquela coletividade. E, claro, as consequências relacionadas com as decisões a partir deste ponto.

Temos muitas entradas e conceitos, que poderiam ajudar a desenvolver a partir deste ponto. Por exemplo: "A sociedade de risco global" do alemão Ulrich Beck, detalha sobre como este assunto -  transnacional por princípio - vem evoluindo desde 1986, apoiado por de uma "irresponsabilidade organizada". Ou: uma revisita ao Leviatã de Thomas Hobbes, que pode ser enviesada pela substituição do ponto central relacionado ao poder concedido, para repor "evitar uma morte violenta" por "evitar uma morte hororrosa". Ou Karl Popper e seu paradoxo da tolerância. Recomendo vivamente estas leituras e de outras que possibilitem o desenvolvimento e aprofundamento destas aspectos, mas prefiro me arriscar na busca de uma via direta ao ponto que possa nos auxiliar neste momento.

Nossas decisões coletivas se baseiam em valores de fundo. Nossos processos atuais de escolha representativa estão repletos de situações que, ou escondem os valores de fundo, ou pior, os confrontam entre si de uma forma (deliberada, penso eu) a gerar confusão, ao invés de propiciar um amadurecimento coletivo sobre os conflitos que ali existem.

Neste momento onde a humanidade praticamento toda enfrenta uma pandemia, em que a taxa de fatalidade está claramente associada à população idosa e em fragilidade (sanitária e social), temos uma nova chance histórica de assistir ao desenrolar dos eventos e decisões políticas transnacionais que nos afetarão a todos - todos sem exceção, para buscar arranhar as superfícies deste debate e expor o que está sendo efetivamente decidido.

Vou tentar um exemplo prático: um candidato que se apresenta dizendo que a tortura é método válido (de investigação ou punição) traz no seu bojo (bozo?) uma clara sinalização sobre sua visão relativa ao valor da vida humana, mas não fala isso! O que é falado e que contém esta visão pode ser resumido em: <<não podemos mais tolerar "ladroagem", custe o que custar>>. Afinal a fala "Deveriam ter sido fuzilados uns 30 mil corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique Cardoso" deixa isso bem evidente. Queira o eleitor dele, queira não, com o pueril argumento de que "ele fala isso mas não é assim que ele pensa..."

Aqui está o ponto chave que penso termos ganhado neste momento. Esse custe o que custar (no caso do exemplo acima poderia ser "algumas vidas humanas torturadas por engano") é que está em jogo. Agora e sempre! Só que antes eram "os corruptos", e agora são nossos pais, tios, avós... E certamente  "mais alguns dos nossos", que isso, no jargão militar, seria "danos colaterais". Aliás, dando crédito ao meu irmão, que ontem mencionou ter visto um artigo que falava sobre as estratégias militares de guerra, sociedades que participam(ram) mais regularmente em guerras e as possuem como legado histórico já tiveram que lidar mais abertamente com o "envio dos nossos jovens para a guerra como forma de preservar nossos valores e sociedade". Talvez por isso possa ser argumentado publicamente.
Também é necessário acrescentar a perspectiva de que, no Brasil, a percepção geral de guerra ainda parece carecer de uma sensação mais efetiva / afetiva que perpasse mais perceptivelmente as diversas classes sociais, seja pela "falta" da guerra interna histórica que ocorreu em outras sociedades, seja pela permanente "guerra interna" que praticamos e que banalizou um número enorme de perda de vidas em muitos contextos, e que aqui não podem ser relativizados: fome, falta de assistência médica, bala perdida, "bala achada" disparada pelas forças públicas, etc. 

Vou concluir resumindo minha visão do momento: a abordagem militarizada contém de forma inequívoca um componente de "valoração" da vida humana individual que precisa necessariamente ser posicionada abaixo do coletivo. Isso justifica parcialmente o mote "estamos em guerra contra as drogas". Mas estar em "guerra contra o virus" torna esse mote não só obsoleto em seu uso, mas também um cruel delator das opções na mesa. Contra tudo e contra todos, Bolsonaro fez publicamente sua opção.

E relembrando outros momentos onde fomos chamados à mudança de comportamento, houve um momento que o destaque era o "vibrião do cólera" e o seu combate, agora voltamos à cena, com o "histrião do corona"...



PS: dedico este texto aos colegas e conhecidos que em 2018 optaram e puseram suas expectativas e votos neste cidadão Bolsonaro. Junto a tantos outros que haviam votado antes no PT e se desiludiram, para os quais os argumentos sobre as fragilidades sociais desta opção eram rechaçados primariamente só pela oposição "ao que está aí", serão importantes agentes de transformação que será necessária à frente. Que a possibilidade de argumentação e a defesa da vida se encontrem de forma mais suave e coerente daqui pra frente!
E por isso, convido a comentários, discordâncias e sugestões para as transformações sociais que estamos sendo convidados a viver daqui pra frente.



Notas e referências:
https://brasil.elpais.com/internacional/2020-03-25/trump-pretende-afrouxar-as-restricoes-antes-de-12-de-abril-enquanto-casos-de-covid-19-disparam-nos-eua.html
Política, na Wikipedia: (do Grego: πολιτικός / politikos, significa " de, para, ou relacionado a grupos que integram a Pólis ") denomina-se a arte ou ciência da organização, direção e administração de nações ou Estados; a aplicação desta ciência aos assuntos internos da nação (política interna) ou aos assuntos externos (política externa). Nos regimes democráticos, a ciência política é a atividade dos cidadãos que se ocupam dos assuntos públicos com seu voto ou com sua militância.
* chamo decisão argumentada pela ótica de Habermas do espaço social de discussão, ou ainda de Rorty e seu "ironismo liberal", como contraponto à decisão intempestiva, autoritária ou ditatorial, mesmo declarando aqui minha visão das limitações conceituais ou discordando destes autores sobre suas avaliações dos desdobramentos ou aplicabilidades de suas teorias.

3 comments:

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  2. Comparto sua conclusão, e ainda penso que os Presidentes de países com semelhança de valores e historia político-económico-social (sul e centro América principalmente), serão os mais desfiados neste impasse global, sem economia solida (acho que nenhum pais alem da china mostrou ate agora o contrario), sem educação nem pesquisa, e sem bem estar social, a miséria humana ficou exposta!

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