Pelo post anterior recebi basicamente dois tipos de resposta (obrigado a quem me respondeu, só faz sentido assim...):
1. "boa, bom texto!", e
2. "aquele imbecil genocida.... ainda vai capitalizar em cima disso depois"
Um único amigo comentou sobre o título provocador, mas eu espero ter me justificado como dedicatória daquele texto.
Para esse aqui, que dedico a quem quer um mundo mais legal do que isso (vou explicitar isso como declaração de princípios, mas será em outro texto), daí por exclusão o tal bozo está de fora com todos os que ainda o apoiam como líder. E vou ser direto. Mas antes preciso declarar que a postura 2 acima me deixa perplexo pela falta de ideias, de qualquer ideia para contrapor esta situação, neste mundo séc XXI, cheio de ferramentas, de gente bem pensante, e de História construída e a construir...
A postura escolhida pelo bozo (pedir a volta da normalidade contrariando tudo e (quase) todos) está de acordo com os princípios que eu identifico que ele prega. Não há novidade. E posso resumir tranquilamente que vejo o racional por trás da atitude e até onde ela tem fundamento, se não, vejamos:
1. pelos registros de consulta rápida, a única causa de morte direta associada ao crash de 1929 nos EEUU foi o aumento de suicídios, e mesmo assim nem tão pronunciado de forma a dizer que foi muito impactante enquanto resultado, mas definitivamente devido aoo aspecto tabu do tema.
2. Por outro lado, a tal da gripe espanhola da 1918-19 deixou em seu rastro alguma coisa entre 50 e 100 milhões de mortes - dependendo da fonte, metodologia de contagem, etc. Foi gente praca.
3. O virus de agora parece já ter mostrado que suas características e efeitos demográficos são bastante distintos do evento histórico "gripe espanhola" (seletividade etária, letalidade por faixa etária, etc),
4, portanto nada parece indicar que teríamos um impacto nem comparável com aquele por causa deste corona vírus de agora mesmo que todas as demais condições fossem similares, ou seja, mesmo que voltemos a mais usual das normalidades.
Reconheço que os dados são os que estão disponíveis e que posso estar enganado com relação a isso, mas esta é uma leitura perfeitamente possível dos quadros e informações disponíveis.
Então aqui está o ponto de ligação: as estruturas de sustentação sociais hoje são muito diferentes das de 1929, especialmente ligadas à produção e distribuição de alimentos, e mais ainda, as interligações econômicas globalizadas, representadas por esta excrescência (praticamente) descontrolada chamada bolsa de valores. Um crash como aquele iria trazer perdas colossais para a população, centradas pela ótica do empobrecimento (vide crise de 2008 e aumento sério dos moradores sem teto nos EEUU, e outros impactos de perdas sociais).
Lembrando que estamos olhado em retrospectiva e pela ótica que pode ser encontrada nesta "liderança" que temos, certo?
Entretanto nada do que foi dito aí em cima diminui o horror humano que está por trás de muitas mortes. Podemos até encontrar muitos aspectos que aumenta o horror, como a seletividade etária atual ("alguns velhinhos vão morrer"), e seu quase não comentado corolário de que isso vai ajudar no equilíbrio das contas da previdência social... Aqui começa o caminho que vai levar ao título deste artigo.
A declaração do bozo contém uma assertiva forte relacionada com a perspectiva dele do valor da vida humana (já sabido), com o valor do respeito aos mais velhos (novidade) e essencialmente, com a decisão sobre o que devemos fazer sobre isso, pessoalmente e coletivamente. Ao deixar explícito esta questão, ele expõe não só estes valores, como a estrutura social de decisão que temos hoje, e por definição reflexiva, a estrutura que teremos que revisar ao final da crise.
Uma decisão social desta natureza pode ser encarada como uma "escolha de Sofia", (filme de 1982, veja nas notas), onde teremos que escolher entregar um valor para preservar outro, sendo que os dois valores são essenciais. Eu definitivamente não considero que estamos diante de uma "escolha de Sofia", mas entendo que algumas pessoas podem achar isso. E entendo também que haverá pessoas que defenderão isso sem ter que "entregar nada", e que portanto são apenas mal caráter, mesmo. Mas não deixo de reconhecer que este assunto pode (e deve!) ser debatido de forma consciente, adulta e consequente, sob pena de não estarmos construindo uma decisão social por vias decentes, mas sim permanecendo ao nível argumentativo empobrecido que já mostrou o que pode fazer, nas eleições de 2018.
Se ainda não me fiz claro no que penso, posso colocar a questão de outra forma: como equilibrar a equação entre as sentenças "o estado tem o direito de exigir que o cidadão sem sintomas fique em casa neste momento" e "entendo as formas de contágio, os riscos de exposição minha e dos outros e decidi não cumprir o isolamento" dentro do momento presente? É preciso ainda também assinalar que apenas nos países onde a liberdade é relativa (China, Taiwan, Korea) o isolamento teve eficácia - sendo compulsório...
Ou ainda: se o isolamento for compulsório, onde irá diferir de uma possível compulsoriedade de ida ao trabalho por todos? No consenso cartesiano?
Daí que este momento grave e triste me possibilitou perceber com clareza onde quero atuar na vida acadêmica, na ligação de muitas áreas que sou afeito: "os mecanismos de decisão social e a participação do indivíduo, mediado pela percepção de risco". Muitas áreas se sobrepõem e se misturam neste tema, e ter clareza da temática vai possibilitar o desdobramento e aprofundamento nos mais diversos aspectos de estudo, aí incluídos História, Filosofia, Psicologia Social, Ciências Políticas, e claro Sociologia.
E onde tem gratidão?
Em três aspectos: além da visão pessoal desta descoberta, sinto gratidão pela expressão clara onde vejo nossa atuação em resposta aos amigos que estão na condição 2 lá de cima: considero evidente que ele nos deu elementos para aprofundar os mecanismos de participação nas decisões sociais mais imediatas, e daí que um montão dos conhecidos que escolheram o bozo podem ser chamados novamente ao debate, com muitos (espero eu) resgates ao trilho do pensar que foi embotado pelo anti petismo - e essencialmente até em convergência com o anti petismo, no sentido da urgência de se revisar os mecanismos de decisão social. E em terceiro lugar, um aspecto fundamental que decorreu da análise histórica pessoal dentro deste tema: houve uma eleição onde o mote era "a esperança vai vencer o medo". Eu acredito que isso contém o embrião e representa um pilar do que precisamos discutir: com medo temos um tipo de processo decisório. Com esperança, outro. O medo ganhou na eleição. Agora não podemos deixar que o discurso pobre e sem argumentos substitua e subverta nos mesmos moldes um processo decisório social de tamanha relevância. Sem paternalismos. Sem ingenuidade forçada. Sem desrespeito.
Notas
https://www.pnas.org/content/106/41/17290/tab-figures-data sobre suicídios em 1929
A escolha de Sofia, resumo: "A trama dirigida por Alan J. Pakula, a partir do romance de William Styron, conta a história de Sofia, uma polonesa que, sob acusação de contrabando, é presa com seus dois filhos pequenos, um menino e uma menina, no campo de concentração de Auschwitz durante a II Guerra. Um sádico oficial nazista dá a ela a opção de salvar apenas uma das crianças da execução, ou ambas morrerão, obrigando-a à terrível decisão." de https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2015/08/o-que-significa-a-expressao-a-escolha-de-sofia-usada-pelo-secretario-giovani-feltes-4822225.html
https://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2020/03/25/analise-quanto-a-tatica-politica-fala-de-bolsonaro-foi-perfeita.htm
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